Opinião
Inexoravelmente

Há vidas que se extinguem aos poucos, como a chama bruxoleante de uma vela, no desenlace natural de uma existência que passou por todas as fases da evolução humana. Pessoas que envelhecem e vão se despedindo paulatinamente dos seus afazeres, dos seus gostos, dos seus costumes, às vezes até dos seus afetos e de si mesmas, caminhando com serenidade para o fim iminente ou ao menos previsível. Recolhem-se ao seu cantinho, quase como que pedindo perdão por ainda estarem entre nós, e ficam à espera da Indesejada que logo virá, inexoravelmente. Foi como se deu há pouco com dona Flora Sarmento, grande amiga da minha avó Izarele, que faleceu às vésperas de completar os seus 105 anos de idade. Outros não possuem tanta sorte, e são colhidos por moléstias incapacitantes que os aprisionam a leitos de hospital ou em sua própria casa, num calvário que martiriza tanto o doente quanto os seus familiares, estes açoitados a cada momento por sua impotência em minorar o suplício do ente querido. Acompanhei o sofrimento de minha avó Maria, que durante anos penou com a incapacidade de falar e de se movimentar decorrente de um acidente vascular cerebral. Vezes muitas, o seu olhar ficava distante e percorria o teto do seu quarto, mesmo em nossa presença, como se a sua alma já buscasse escapar da prisão em que se convertera o seu corpo; noutras, aquele mesmo olhar repousava profundamente em nossos olhos, confessando em silêncio um imenso cansaço por toda aquela situação que já se fazia demasiadamente prolongada, uma tortura atroz para a qual não havia nenhuma solução possível. Num caso ou noutro, vindo naturalmente ou arrastando consigo um turbilhão de dores e de estupefações, a morte é a única certeza que prevalece em meio às dúvidas que assolam a existência humana. Chegando-se à vida, dela se vai sair um dia, pois só não morre quem não tenha nascido. Quem foi embalado num berço haverá de ser encerrado numa urna funerária, sentença definitiva que não comporta apelo algum. No velho Cemitério de Jaraguá, um túmulo traz a inscrição incômoda: ?Eu fui quem tu és, e tu serás quem eu sou?. Pena que ainda haja quem se esqueça dessa realidade que a todos irmana, e empine o nariz e estufe o peito como se fosse a mais importante de todas as criaturas, como se caixão tivesse gaveta e mortalha tivesse bolso. No frontispício do Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, no Prado, a crueza da dedicatória: ?Aos mortos, os que vão morrer?. Somos cadáveres adiados, e a tênue chama que ainda nos mantém por aqui a qualquer momento pode se apagar.