Opinião
Um só coração

?De repente é aquela corrente pra frente/Parece que todo o Brasil deu a mão.../Todos ligados na mesma emoção.../Tudo é um só coração!? Os versos de Miguel Gustavo embalaram o Brasil em 1970 na conquista do tricampeonato de futebol, no México. Na cadeia, ou no exílio, parte da esquerda não queria o País vitorioso, porque isso referendaria o torturador e sangrento governo do general Emílio Médici. Mas foi só a bola começar a rolar, que o pragmatismo foi posto para escanteio, nos tornamos um só coração. Como a história tende a se repetir ? ditaduras à parte ?, vivemos situação semelhante agora. O antagonismo manifesto entre esquerda e direita, entre ?coxinhas? e ?petralhas?, nunca foi tão acirrado. Diferenças ideológicas têm provocado conflitos familiares e afastado amigos. Mas eis que chega a Copa e uma trégua se estabelece: todos torcem juntos. De repente, o pênalti não marcado ganha importância maior que o aumento dos combustíveis, ou que o último tiroteio no Rio de Janeiro. Entramos numa espécie de transe, sonhando com gols e uma glória efêmera. Mas não somos os únicos. Senegaleses comemoraram a vitória do seu país sobre a Polônia, em São Paulo, com farinha e sem álcool (são muçulmanos). Estão no Brasil superando as agruras e tentando sobreviver; e o futebol é um momento de alegria única. É assim pelo resto do mundo, com jovens pobres projetando em astros milionários sonhos de superação, fortaleza e redenção. ?Pão e Circo?, diriam os romanos, e assim agiram os militares. Mas um governo impopular e sem apoio bélico como de agora, não há como usufruir das benesses do circo. Resta o caro pão. Seguro por um fio, tenta chegar ao final do ano sem mergulhar a Nação em pesadelos, como a recente greve dos caminhoneiros. Sendo realista, não há dividendos políticos caso o Brasil vença a Copa ? a própria CBF, envolta em corrupção, foi alijada pela Fifa ?, a não ser o sentimento puro de vencer uma competição. Nosso País esteve em todas as copas, em bons e maus momentos. Somos respeitados como uma força do futebol, mas a maioria dos jogadores que integra a seleção brasileira, não joga aqui. Repete-se a máxima econômica: exportamos commodities já que não temos estrutura para processamento e aproveitamento interno. No exterior, nossos jovens talentos deslumbram, imagem antípoda da dura realidade local. Caso de Roberto Firmino, que começou nos campos de pelada do Vergel do Lago (alagoano, único nordestino no ?escrete canarinho?) e conquistou o mundo. Apesar do glamour e da casa em condomínio fechado, seus pais ainda podem ser vistos, nos finais de semana, no bairro onde o filho nasceu. Não querem perder as raízes, se juntam aos velhos amigos para torcer pelo filho e pela seleção. Coisas do futebol.