Opinião
As leituras, as bibliotecas de dom Hélder Câmara e uma sabatina (I)

Consta, que desde a formação no seminário, Hélder Câmara, se destacou pelo gosto pela literatura nacional, portuguesa e francesa. Nessa fase, já iniciou o registro de suas meditações místicas e as anotações nos livros lidos. Sendo atraído pelas leituras politico-sociais de Jackson de Figueiredo e a preocupação com a ação política do catolicismo, caindo depois no integralismo, que ele denominou ?pecados de um bispo e um equívoco?, influenciado por Alceu Amoroso Lima, que redimiu-se pós golpe de 64. O homem miúdo sempre esteve aberto para estudos com debates entre várias pessoas e ouvir várias opiniões, e quando se expressava se transformava num gigante, sempre se derramando em alegria e disponibilidade. Em 1936, chega ao Rio de Janeiro, o Pe. Hélder. Começou a publicar em revistas católicas e quando Dom Leme o convidou em 1941 para lecionar na Pontifícia Universidade Católica do Rio, ele se expressou: - eu sempre sonhei com uma universidade católica no Brasil, porém uma universidade em que eu fosse o aluno! Em 64, foi escalado como arcebispo de Olinda e Recife. Sempre se cercava duma equipe de secretárias mulheres, e promovia encontros intelectuais com o ceramista Brenand, escritor Ariano Suassuna, poeta Daniel Lima e o músico Jaime Diniz. Além de manter-se atualizado quando à filosofia, sociologia, literatura, e artes, o objetivo principal dessas noitadas era encontrar saídas para situações delicadas durante o regime militar. Em Paris, com dez mil pessoas a ouvi-lo, Dom Hélder afirmou: ? as torturas existem?, mas vós sentireis que não há ódio em meu coração e que não existe nenhuma intenção político-partidária em minha tomada de posição. Seu auxiliar principal para a juventude, Pe. Henrique, tinha sido trucidado. Estima-se que dom Hélder tenha formado três bibliotecas ao longo da vida, reunindo os que foram lidos, anotados e indicação da data de aquisição: Fortaleza, Rio de Janeiro e Recife. As secretárias eram ocupadas e quase sempre não dispunham de tempo para ler os livros anotados e enviados por ele. Muitas vezes costumava presentear com livros de sua biblioteca. Lucy Pina Neta, acaba de lançar o livro ? O Dom da leitura Hélder Câmara e suas bibliotecas?, Paulinas, 2018, onde tenta resgatar o Hélder leitor, para quem os livros foram muito mais do que uma fonte de informações. Os livros eram anotados, e já conseguiram resgatar 700 livros da fase vivida no Rio de Janeiro de 1936 até 64. Os livros da biblioteca Fortaleza, foram poucos, porque se considerou obra pessoal apenas as anotadas ou assinaladas por ele na data de aquisição e ficaram misturados aos da irmã. Dom Hélder leu Freud em 1941, no seu ?Introdução à psicanálise? e Nietzche em 1932, no ?Assim falou Zaratrusta?. Houve uma mulher Virgínia Cortês nas décadas 40 e 50, com quem o Arcebispo teve interlocução intelectual de elevado nível, tendo os dois feito anotações a quatro mãos, demonstrando o resultado dessas leituras e releituras: Ilíada e Odisseia de Homero, Leon Bloy, Miguel Unamuno,Charles Peguy. O impacto intelectual dessa mulher na vida de Dom Hélder ainda está sendo destrinchada. Faleceu em 1959, golpe duro para o amigo. E por fim a terceira e última biblioteca, a de Recife. Somam mais de dois mil exemplares no período 1964/1999. Jean Guitton, filósofo cristão e professor de redação da Sorbone está lido na biblioteca Recife. Na fase da biblioteca Recife, a doutoranda Lucy Pina, de Ciências da Religião PUC Pernambuco relaciona cinco obras com interações entre dom Hélder e os autores. Ele costumava seguir um roteiro de leitura e ela conseguiu destrinchar porque é a responsável pela casa museu Dom Hélder Câmara e perita em História para a causa da beatificação e canonização de Dom Hélder Câmara, com a fase Recife concluída. Até 2020, espera-se que o Vaticano se pronuncie. Ele seguia o seguinte roteiro: ?breve justificativa pela escolha do livro, comentário sobre o autor, a circunstância em que a leitura foi feita ? nos minutos vagos ou durante a vigília e concluía com as indicações ?aproveitar ao máximo?, e como uma receita registrava as sugestões. Devorava livros de temáticas múltiplas, com temas como: marxismo, budismo e economia, espiritismo kardecista e desarmamento, judaísmo e política internacional, história da Igreja e poesia, práticas cristãs primitivas e discursos protestantes, como La force d?aimer de Martin Luther King ou Danser as vie de Roger Garaudy, de quem foi amigo. E escreveu a ?Sinfonia dos dois mundos?, com o argumento para o balé Messe pour les temps futur, coreografado por Maurice Béjard. E seu entusiasmo em torno do futuro do homem e seu papel de co-criador levou dom Hélder a escrever ? Robô, com quem dançarás?? e esta interlação do homem com a evolução tecnológica e as questões candentes da população e da fome. Suas reflexões atribuía ao chamado Pe. José, que numa madrugada registrou: ? em tua biblioteca quantos livros dormem, sonolentos, sem perder a esperança de um dia sobrar-te algum tempo para, ao menos abrires alguns deles, embora sem o menor esforço de apreender as mensagem que, em geral, os livros trazem...(Tóquio, 1967) e sobre os livros lidos, registrou em 1990: ? Livros Lidos ? não pensem que ocupam espaço desmerecido... quantas vezes vocês são testemunhas, volto a procurar leituras passadas, lições escondidas, que não os olhos não puderam guardar, mas a própria memória, a inteligência mesma, não tiveram a vaidade e a pretensão de saber reter...? Dom Hélder, como Jorge Luiz Borges, deve ter pensado: ?Prá mim, o céu é uma biblioteca?.
