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quarta-feira, 16/07/2025 | Ano | Nº 6010
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Províncias da alma

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A frase está num belo livro do jornalista Marcelo Canellas: ?Eu me lambuzo de meu excesso de memória para lembranças que afagam a alma?. Comigo, mero cronista provinciano, é sempre assim. Sigo estrada afora, driblando as minhas muitas imperfeições e cultivando os meus poucos acertos, e em cada curva do caminho vou-me deparando com pessoas, coisas e situações que me trazem de volta episódios guardados no mais recôndito da minha alma, fazendo-me reviver sentimentos que carrego desde a infância, sobretudo aqueles brotados da minha condição de muriciense. ?Eu sou um pobre homem da Póvoa do Varzim?, disse o grande Eça de Queirós em carta a João Chagas; eu sou um pobre homem de Murici, digo-lhes eu, e tudo quanto tenho escrito é um retorno às províncias da minha alma interiorana. ?A pátria é a infância?, afirmou Charles Baudelaire. Em minha pátria eu vi meninos afoitos tibungando no Mundaú, em meio às baronesas arrastadas pela correnteza no tempo da cheia. Sábado de manhãzinha, os bois bravos que vinham pela ponte para o matadouro muitas vezes escapavam dos vaqueiros e desembestavam rua acima, alguns deles entrando na venda de seu Horácio e fazendo os fregueses pularem para dentro do velho balcão de madeira. Seu Ananias Juvêncio disputava com meu avô Zezinho Fogueteiro o título de comerciante mais abusado, o bar de dona Neuza tocava as músicas de Waldick Soriano e o papagaio do bar do Américo saudava os fregueses com os palavrões mais cabeludos. A sinuca do Bossa Nova, a cerveja gelada de seu Antônio Ribeiro, os pastéis de dona Judith Alcântara, os suspiros de dona Lica Gomes, os pinhões de mel com açúcar de Vandete da dona Docília, os bolinhos da madrinha Lale, as bolachas do Zé Pinheiro, os sonhos da padaria de seu Antônio Casado... 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, dona Regina Cachinho carregava a estampa da protetora da visão numa caixa de sapato ornamentada de flores de plástico, arrecadando espórtulas ao som de uma bandinha esquenta-mulher simplória e desafinada. Escrevendo sobre tudo isso, em verdade escrevo é sobre mim mesmo, eu que nunca me afastei de vez da pequenina rua 7 de setembro, onde dei os meus primeiros passos e levei as minhas primeiras quedas de bicicleta. Vejo Maria Geralda a me presentear com biscoitos recheados que ela comprara no carrinho de dona Adélia, relembro seu Esíquio protegendo o nosso sono na vigilância noturna, cacetete nas mãos e capote às costas, varando a madrugada entre alminhas que iam à igreja e cachaceiros que voltavam da rua da Gandaia. Nutro o meu espírito com esses encantamentos e encho as minhas mãos com esse punhado de frações de eternidade.

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