Opinião
Crendices

Eram muitas as crendices populares que grassavam em Murici no meu tempo de menino. Eu escutava muitas delas na venda do Seu Horácio e na farmácia do Tio Jairo, propagadas pelos matutos que vinham dos sítios e fazendas no dia da feira, mas a maioria chegava aos meus ouvidos pela voz de Dolores Correia, a velha lavadeira das roupas da minha casa. Enquanto ensaboava camisas e lençóis no tanque do quintal, Dolores tagarelava sem parar com minha avó Izarele, e eu gostava de ficar por ali, ouvindo as lições que lhes haviam sido passadas pelos mais antigos, perpetuando a tradição oral que sedimentou as raízes das tradições nordestinas. Se um calçado ficasse emborcado, estava chamando a infelicidade para o lar, o que também acontecia se se quebrasse um espelho. Passar por baixo de uma escada atraía azar, assim como cruzar com um gato preto. Não se rezava sem camisa, pois o anjo da guarda iria embora. Varrer os pés de uma pessoa era condená-la a nunca se casar. Apontar para as estrelas criava verrugas, e não se contava um mau sonho em jejum, sob risco de ele se concretizar. Sonhar com dentes, aliás, era sinal de morte de algum conhecido, e se fosse com os dentes da frente, pior ainda: era morte de parente próximo. Muitas coisas, aliás, chamavam a morte: deixar a gaveta aberta, o urubu pousar no telhado da casa, a coruja passar sobre a casa ?rasgando mortalha?... Borboleta preta entrando no recinto era mau agouro, esperança entrando era felicidade. Galo cantando ao anoitecer, sinal de moça fugindo; cachorro uivando à noite, sinal de morte por perto. Quando chegávamos num velório e víamos o defunto com os olhos entreabertos, sabíamos que outra morte se aproximava daquela família. Certa feita fui a um enterro com os meus pais, e o ferimento a bala do morto começou a sangrar: era o assassino que estava presente, como a polícia comprovou dias depois. Existiam soluções para os mais diversos casos. A criança está custando a falar? Dá-se-lhe água de chocalho. Está custando a andar? Ponha-se-lhe a arrodear a casa, durante três sextas-feiras seguidas. A visita está demorando muito a ir embora? Coloca-se uma vassoura atrás da porta, com o cabo para baixo. O sujeito sua muito nas mãos? Basta esfregá-las na parede de uma igreja. O doente não quer morrer logo? É só mandar preparar antecipadamente o caixão e a mortalha. Quer curar-se de sarampo? Come cocô de cachorro. O menino soluça sem parar? Um algodão molhado colocado em sua testa resolve o problema. Eram mistérios da sabedoria do povo, que nós não ousávamos desobedecer e nem questionar; afinal, o seguro morreu de velho e o desconfiado ainda vive...