ARTIGO
Ensaio sobre a inocência de Capitu
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Quando Machado de Assis lançou o livro Dom Casmurro, em 1899, deu vida à personagem mais enigmática da literatura, Capitu. A história gira em torno do (hipotético) adultério entre Capitu, a verdadeira protagonista da história, e Escobar, amigo de Bentinho (narrador-personagem casado com Capitu). Bentinho narra sua saga amorosa já velho e triste e é desse ponto de vista que são descritas as etapas de sua vida, desde a infância, na saída do seminário (a mãe queria que ele fosse padre), a formatura em Direito, seu casamento com Capitu e, por fim, o trágico fim de seu relacionamento com a famosa “cigana oblíqua e dissimulada, de olhos de ressaca”.
Aqui Machado consegue extraordinário efeito estilístico, está no auge de sua criatividade e usa profunda penetração psicológica, com domínio dos recursos da linguagem. Dom Casmurro é o livro, principalmente porque não deixa claro se Capitu foi mulher honesta, mais uma vítima da cabeça ciumenta do marido, ou se ela foi falsa e sonsa, capaz de trair o cônjuge com o melhor amigo dele, ato leviano que resultaria em seu único filho, Ezequiel. Os mistérios de Capitu instigaram a imaginação dos contemporâneos de Machado e chegaram até esta geração com a mesma força. E as perguntas são as mesmas até hoje: “Capitu foi infiel a Bentinho? Foi para a cama com Escobar? Ezequiel era filho de quem?” Já li Dom Casmurro algumas vezes, em cada leitura fico do lado de algum personagem: na minha adolescência achava Capitu vagabunda; nas minhas últimas leituras, acho que o velho ranzinza é o único culpado pela tragédia. Sob essa perspectiva, percebo sinais de que Capitu foi vítima, o adultério não passou da loucura do ciumento Bentinho. Machado nos dá pistas: no cáp. 51, antes de surgir o ciúme pelo qual foi consumido, Bentinho faz revelação sobre a afetividade de Capitu: “Oh! minha doce companheira da meninice”. Outro ponto a ser observado a respeito da personalidade de Capitu são suas palavras envolvidas de dignidade (cap. 138): “Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação”. No trecho, nota-se a altivez e a dignidade com que ela enfrenta as acusações do delirante marido. Noutra passagem, Bentinho declara (cáp. 21): “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher que eu era homem”. Aqui Bentinho reconhece que ela era, como ser humano, superior a ele. Capitu era uma mulher à frente de seu tempo, tinha brio, mostrava-se decidida (comportamento incomum às mulheres à época) e muito curiosa (cáp. 31): “Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança daqui, um adágio dacolá...” As reticências revelam que as curiosidades dela não tinham fim. Capitu era uma mulher que não se enquadrava em padrões opressivos. Enfim, mais importante do que minhas considerações sobre os personagens da obra é a significância do próprio livro, um divisor de águas na literatura.