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Nº 5694
Opinião

A morte e a burocracia

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Por Aloísio Alves. Publicitário e membro efetivo da Apalca | Edição do dia 11/01/2020 - Matéria atualizada em 11/01/2020 às 06h00

Vinte e uma horas da terça-feira, véspera de Natal, e a família que se reunia em torno da mesa para a ceia tradicional recebe a notícia: morre em hospital um ente querido. Não foi surpresa porque todos já estavam na expectativa de que a qualquer momento isso poderia acontecer. O paciente era idoso, tinha câncer de próstata e grave infecção. O que não constava do script foi a odisseia seguinte para os procedimentos legais de liberação do corpo para o velório e sepultamento. Dos acontecimentos anormais escritos no poema de Homero (século VIII a.C) esse capítulo ocorrido em Maceió pode ser considerado absurdamente impróprio para o século XXI. O momento a seguir, é impossível esquecer que existiu; nem invocando Nossa Senhora das coisas impossíveis, nos livramos das leis inadequadas dos homens. O Delfino foi casado, viúvo e não tinha filhos, os outros cinco irmãos se foram primeiro que ele. Os mais próximos para cuidar do funeral eram os sobrinhos, precisamente o que o acompanhou durante o período da enfermidade.

A maratona começa na mesma noite natalina quando o hospital exigiu os procedimentos legais para entregar o finado à família e liberar a Atestado de Óbito. Viúvo e sem filhos carnais, o parente mais próximo teria que recorrer à Defensoria Pública, fechada naquela noite, claro. A solução foi aguardar o plantão no dia seguinte a partir das oito horas. A defensora e auxiliares chegaram às nove e quinze. Era feriado e a noite anterior deve ter sido de boas comemorações. Entre idas e vindas de documentos exigidos, duas horas e quarenta e cinco minutos foi o tempo necessário para a conclusão da primeira fase da burocracia. Próxima etapa, Poder Judiciário de Alagoas, Juízo de Direito da Cartória Plantonista Cível para obter Alvará Judicial. Às onze horas e quinze minutos, cumprindo os trâmites legais, foi dada entrada no despacho da Defensoria Pública para o Juiz Plantonista conceder o Alvará Judicial. Às quatorze e quarenta e cinco minutos, o juizado encaminha online para parecer do Ministério Público, que retorna uma hora e vinte minutos depois. Às dezesseis e trinta horas, enfim, sai o Alvará liberando o corpo do morto para a família sepultar, o que só foi possível quase três dias depois. Nas quatro laudas expedidas pelo magistrado, chama a atenção o que está escrito tomando como referência o artigo 79 da Lei 6.015/1973 – “A súbita perda do ente querido, por seus familiares e amigos, por si só motivo de angústia e sofrimento, não pode ser estendida pela burocracia estatal...” Esse texto poderia finalizar exatamente aqui para que cada leitor faça seu próprio julgamento. Entretanto, o artigo 79 da Lei supramencionada é apenas mais uma das milhares que não são cumpridas, independente da “angústia e sofrimento” lá citados.

Em situações assim, a lei apenas se aplica para uma minoria privilegiada, influente. Casos semelhantes aos escritos nesta crônica quando ocorrem com famílias humildes, pobres, uma constante, chegam a durar até quatro ou cinco dias de peregrinação até a retirada do corpo do ente querido que, em geral, vai para o IML. Morte e burocracia caminham juntas no país das dificuldades para os menos favorecidos.

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