A ironia de Machado de Assis

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Agamenon Magalhães Júnior - ensaísta, gramático e educador - 25/03/2020

Machado de Assis escreveu tão surpreendentemente bem que até hoje seu estilo inspira escritores e cativa leitores por toda parte. A cada leitura ou releitura que faço do Bruxo do Cosme Velho, fico imaginando como ele chegou àquele argumento, como construiu determinado enredo ou elaborou diálogos tão instigantes. Ele ainda é o maioral, o escritor por excelência, o todo-poderoso das palavras. Dos mil recursos de que Machado de Assis se utilizou, é meu objeto de estudo (e encantamento) o “humor irônico”. Cada palavra utilizada pelo mestre tinha rigor cirúrgico.

Apesar da própria gramática da Língua Portuguesa ensinar o que seja “ironia”, como recurso estilístico (“consiste em utilizar um termo em sentido oposto ou usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico e humorístico”), Machado colocava um ingrediente no caldeirão que ainda não se descobriu. No romance “Helena”, capítulo 6, o mestre escreveu: “A primeira das duas mulas que [o preto] conduzia, olhava filosoficamente para ele”. Nota-se o traço irônico no uso inusitado do advérbio “filosoficamente” para descrever o olhar do animal. Sem falar que é frequente na obra machadiana a aproximação entre burros e filósofos. No primeiro livro de Machado, “Ressurreição”, assim escreveu com irreverência já no primeiro capítulo: “Vieira era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos sensibilidade que disposições (...). Nasceu parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino”. Humor e descrição caricata de personagem teriam espaço garantido nas narrações do mestre. Com tom de comicidade, Machado escreveu sobre traição em “Memória póstumas de Brás Cubas”: “– Você janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves. – Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o melhor vinho do Rio de Janeiro”. Ironia machadiana pura. Com efeito, Lobo Neves possuía o melhor vinho para Brás Cubas: sua mulher Virgília, que os dois (o marido e o amante) bebiam na mesma taça. Em seu penúltimo romance, o incrível “Esaú e Jacó”, de 1904, nos faz rir com o texto: “Era dançarina; eu mesmo já a tinha visto dançar em Veneza. Pobre Caponi! Andando [na rua da Quitanda], o pé esquerdo saía-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade”. O tal “buraquinho” tem valor cômico e irônico. O “buraquinho” na meia da ex-bailarina é um símbolo de decadência, em contraste com o passado de glórias. É a nostalgia do apogeu, descrita com humor pelo Conselheiro Aires, que a conheceu em melhores dias. Machado se valia desse caminho estilístico. Em tempo, não é à toa que a palavra “ironia” etimologicamente significa “dissimulação”. Grande Machado, fingidor mágico das palavras. Na obra-prima “Dom Casmurro”, o personagem Bentinho usa um eufemismo irônico para dizer que todos os seus velhos amigos estão mortos, ou seja, estão debaixo da terra, estudando a geologia dos cemitérios, assim: “Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”. Dou “mil vivas!” ao maior de todos os escritores porque seu humor sofisticado me faz viajar por mundos sempre com um sorriso ensolarado.

Machado de Assis escreveu tão surpreendentemente bem que até hoje seu estilo inspira escritores e cativa leitores por toda parte. A cada leitura ou releitura que faço do Bruxo do Cosme Velho, fico imaginando como ele chegou àquele argumento, como construiu determinado enredo ou elaborou diálogos tão instigantes. Ele ainda é o maioral, o escritor por excelência, o todo-poderoso das palavras. Dos mil recursos de que Machado de Assis se utilizou, é meu objeto de estudo (e encantamento) o “humor irônico”. Cada palavra utilizada pelo mestre tinha rigor cirúrgico.

Apesar da própria gramática da Língua Portuguesa ensinar o que seja “ironia”, como recurso estilístico (“consiste em utilizar um termo em sentido oposto ou usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico e humorístico”), Machado colocava um ingrediente no caldeirão que ainda não se descobriu. No romance “Helena”, capítulo 6, o mestre escreveu: “A primeira das duas mulas que [o preto] conduzia, olhava filosoficamente para ele”. Nota-se o traço irônico no uso inusitado do advérbio “filosoficamente” para descrever o olhar do animal. Sem falar que é frequente na obra machadiana a aproximação entre burros e filósofos. No primeiro livro de Machado, “Ressurreição”, assim escreveu com irreverência já no primeiro capítulo: “Vieira era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos sensibilidade que disposições (...). Nasceu parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino”. Humor e descrição caricata de personagem teriam espaço garantido nas narrações do mestre. Com tom de comicidade, Machado escreveu sobre traição em “Memória póstumas de Brás Cubas”: “– Você janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves. – Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o melhor vinho do Rio de Janeiro”. Ironia machadiana pura. Com efeito, Lobo Neves possuía o melhor vinho para Brás Cubas: sua mulher Virgília, que os dois (o marido e o amante) bebiam na mesma taça. Em seu penúltimo romance, o incrível “Esaú e Jacó”, de 1904, nos faz rir com o texto: “Era dançarina; eu mesmo já a tinha visto dançar em Veneza. Pobre Caponi! Andando [na rua da Quitanda], o pé esquerdo saía-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade”. O tal “buraquinho” tem valor cômico e irônico. O “buraquinho” na meia da ex-bailarina é um símbolo de decadência, em contraste com o passado de glórias. É a nostalgia do apogeu, descrita com humor pelo Conselheiro Aires, que a conheceu em melhores dias. Machado se valia desse caminho estilístico. Em tempo, não é à toa que a palavra “ironia” etimologicamente significa “dissimulação”. Grande Machado, fingidor mágico das palavras. Na obra-prima “Dom Casmurro”, o personagem Bentinho usa um eufemismo irônico para dizer que todos os seus velhos amigos estão mortos, ou seja, estão debaixo da terra, estudando a geologia dos cemitérios, assim: “Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”. Dou “mil vivas!” ao maior de todos os escritores porque seu humor sofisticado me faz viajar por mundos sempre com um sorriso ensolarado.