Opinião
A flexibilização é um desafio
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Uma jovem mãe ficou desesperada quando o seu único filho, um pré-adolescente, precisou se internar na UTI. Clamava para ficar à beira do seu leito, mas isso era impossível: uma UTI repleta de pacientes intubados é um ambiente altamente insalubre e ameaçador. Uma família precisou internar os genitores, um filho e a nora conjuntamente. O patriarca, depois de semanas de luta na UTI , faleceu. Os três remanescentes da família permaneceram internados e não puderam dele despedir-se. Uma médica do Comitê de Crise, guerreira da pandemia desde o seu início, viu a irmã médica ir para a UTI, outra médica também da linha de frente, acompanhou o pai na UTI. Ambas perderam os parentes próximos, mas continuaram trabalhando, dolorosamente cumprindo as suas missões.
O Brasil ultrapassa 2 milhões de infectados por Covid-19. Entra-se em uma flexibilização com algumas poucas regiões em curva decrescente, outras estabilizadas e duas com assustadoras curvas ascendentes de novos casos e óbitos. Nesse cenário de persistência da pandemia, de insegurança epidemiológica, quando a prudência da ciência recomendaria que o distanciamento social fosse mantido, são abertas flexibilizações teoricamente controladas, quando falta sobremaneira uma autoridade ministerial central técnica para orientar, conduzir e monitorar esse movimento, obedecendo sobretudo às recomendações da OMS. O que precisaria ser uma flexibilização muito estudada e gestada, coordenada por um ministério da Saúde, com monitoramento e cooperação íntima entre ele e os gestores estaduais e municipais, fica aos cuidados unicamente dos gestores estaduais e municipais, que, submetidos à grande pressão do setor produtivo, tentam conciliar uma retomada das atividades econômicas com o controle da pandemia. Um Ministério da Saúde ocupado interinamente por mais de dois meses por um general excelentemente preparado em logística militar mas não para a missão de comandar essa guerra sanitária, poderia ter sido poupado dessa hercúlea missão para a qual não teve o mesmo preparo. As Forças Armadas, alertado pelo verborrágico e exagerado ministro Gilmar Mendes por estarem expostas a grande desgaste por terem assumido um ministério fundamental em momento tão crítico, mas sem autonomia técnica, futuramente constatarão que se associaram a uma gestão que se caracterizou pelo negacionismo científico, pelo repúdio ao isolamento social, pela produção e recomendação de uso indiscriminado de cloroquina, pela tentativa de maquiar os números da pandemia. Quando o general Pazzuelo chegou ao ministério, existiam 14,8 mil mortes; hoje beiram as 80 mil. Temos 13% dessas mortes, mas apenas 2,8% da população mundial. A flexibilização do distanciamento social é uma tentativa arrojada de conciliar o controle da pandemia e a retomada das atividades econômicas, um imponderável desafio para o qual será essencial termos um Ministério da Saúde comandado por um técnico da área e que tenha alinhamento com a ciência. Desse modo, pouparemos o Exército de maiores desgastes e enfrentaremos a persistente pandemia. Os médicos conseguiram salvar aquele adolescente que retornou aos braços da mãe, eles vibraram e também vibram quando dão uma alta a um desconhecido que passou 33 dias intubado na UTI. Mas eles estão exaustos, estão esgotados! Um recrudescimento da pandemia não é descartável e apelam para que cada um faça a sua parte, principalmente o presidente da República.