loading-icon
MIX 98.3
NO AR | MACEIÓ

Mix FM

98.3
quinta-feira, 03/07/2025 | Ano | Nº 6002
Maceió, AL
24° Tempo
Home > Opinião

Opinião

As fantasias macabras

.

Ouvir
Compartilhar
Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Whatsapp

Os foliões cantavam pelas ruas do Rio: “Quem não morreu da hespanhola, quem dela pôde escapar, não dá tratos à bola, toca a rir, toca a brincar... A quadra não é de prantos! Tragam nos lábios sorrisos, pois já por todos os cantos se houve a musica dos guisos!”. O Carnaval de 1919 é considerado o mais animado do Rio, a cidade mais atingida pela gripe espanhola que superlotou os cemitérios, lotou os hospitais, fazendo-os proibir a entrada de novos pacientes e deixou as ruas empilhadas de cadáveres. Na Santa Casa, então o maior hospital, se criou o boato de um veneno letal que era servido à meia-noite aos doentes moribundos na forma de chá da meia-noite, fantasia que ficou imortalizada na memória popular. Depois do luto e de todo o sofrimento da epidemia, ela foi lembrada em desfiles e marchinhas por toda a cidade. A população se divertia e extravasava nas mesmas ruas antes entupidas de cadáveres.

Se poucos meses antes era motivo de medo, agora a gripe estava presente em músicas e fantasias, em tons jocosos e de crítica. O chá da meia-noite virou bloco, assim como música do compositor Baiano em um espetáculo de revista. Esteve presente no desfile das grandes sociedades - ainda não existiam as escolas de Samba -, organizações carnavalescas com carros, alas e alegorias que desfilavam no centro da cidade. Os Democráticos, a maior de todas as sociedades, comemorava 50 anos e trazia um carro alegórico em forma de Chá da Meia-Noite Roupas e fantasias tinham uma onda erótica. Nelson Rodrigues escreveu em 1976: “A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas”. Ficou marcada em sua memória a imagem de uma vizinha loura fantasiada de odalisca, com o umbigo de fora, na Praça Sáenz Peña. Como ela, muitas exibiam pedaços do corpo escondidos até a véspera. Conceberam-se muitos “filhos do Carnaval”, que nasceriam em novembro e dezembro. Natural, segundo Cony, que “depois da fase mortuária viesse a fase libertária ou libertina”. Músicas pornográficas como “Marcha do Racha-Lenha”, na qual os homens diziam: ”Na minha casa não se racha lenha”. Respondiam as mulheres: “Na minha racha, na minha racha”. E acrescentavam: “Na minha casa não se pica fumo”. Daí em diante a coisa descambava... Se a gripe mortífera podia voltar, era mais um motivo para se entregar à volúpia como se não houvesse amanhã, porque talvez não houvesse mesmo. Mas não era inédito. Na Europa devastada pela Peste Negra, no século 14, também houve festa. Comparando-as, “houve perda dos laços comunitários, a ruptura das normas sociais, a fuga, o medo e a surpreendente alegria”, escreveu o historiador Ricardo Augusto dos Santos. As pessoas viram a morte de perto. E isso deixa marcas culturais, diz David Butler, lembrando que o tradicional Carnaval de Veneza, celebrado desde o século 11, é até hoje influenciado pela peste negra. “Veneza foi atingida 30 vezes pela peste. E a máscara mais famosa é a do Médico da Peste, virou a cara da cidade”. Carnaval tem na música, nas máscaras e nas fantasias os seus componentes atávicos. Não teremos Carnaval, mas não nos faltam FANTASIAS macabras e PERSISTENTES: temos a do Tratamento Precoce do Covid-19, as Teorias da Conspiração com vírus sendo criados em laboratórios chineses para destruir o mundo capitalista, vacinas com chips que transformam o Zé Cavaquinho da Viçosa em um Stalin, com bigode de vassoura e tudo o mais, emissoras de televisão conluiadas com Bill Gates para comunizar o mundo capitalista e acabar com o cristianismo, curandeiros com CRM, Napoleões de Hospício turbinados por cloroquina, jacarés fascistóides e os milicianos antivacinas, agora metamorfoseados em supervacinadores. As fantasias de Carnaval são saudáveis, duram só quatro dias. Precisamos ficar em casa, evitar aglomerações e sonhar que a fantasia de ter uma vacina que, antes do próximo Rei Momo chegar, se torne realidade.

Relacionadas