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Nº 5759
Opinião

Mortos com rostos

BERNARDO JOFFILY * Os números e nomes das vítimas nos recentes conflitos no Oriente Médio formam gráfico que mereceria toda atenção da opinião pública do planeta. A base é um levantamento das mortes ocorridas no conflito palestino-israelense, ano a ano e

Por | Edição do dia 06/04/2002 - Matéria atualizada em 06/04/2002 às 00h00

BERNARDO JOFFILY * Os números e nomes das vítimas nos recentes conflitos no Oriente Médio formam gráfico que mereceria toda atenção da opinião pública do planeta. A base é um levantamento das mortes ocorridas no conflito palestino-israelense, ano a ano e mês a mês. As fontes foram o jornal “New York Times”, o governo de Israel e a Cruz Vermelha Internacional. Merece exame, porque contradiz, com números sólidos, uma crença de veiculação corrente na mídia globalitária e bastante difundida na opinião pública: a idéia de que o grande problema daquela parte do mundo é a matança de judeus israelenses em atentados dos grupos extremistas palestinos – qualificados de terroristas, sobretudo depois do 11 de setembro. Este tem sido o principal álibi do governo Sharon. Ora, a estatística das mortes, cobrindo os últimos 15 anos, evidencia o contrário. Ano após ano e mês após mês, inclusive neste momento de crise particularmente aguda, as mortes palestinas são imensamente mais numerosas que as israelenses. A proporção entre os mortos dos dois lados é de mais de cinco palestinos para cada israelense. A cobertura jornalística dominante dá a entender exatamente o contrário. Os israelenses mortos no conflito, principalmente os civis, aparecem como indivíduos concretos. Com seu rosto, nome e sobrenome, família... São seres humanos de carne e osso, como eu e você. Seria altamente revelador se alguém se desse ao trabalho de apurar quantos centímetros de coluna de jornal, e quantos segundos de noticiário televisivo recebem em média os mortos judeus e os palestinos. Os mortos palestinos aparecem via de regra como simples números no pé das notícias. Vez por outra, algum detalhe entreabre o manto do anonimato, revelando, por exemplo, a idade das vítimas – quase sempre meninos, de 18, 15, 13 anos de idade. Muito raramente o manto se abre, por um átimo, e revela a verdadeira grande tragédia em curso naquela parte do mundo. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1º de outubro de 2000, quando a polícia de Israel matou a tiros, diante das câmaras de TV, o menino Mohammed al Durah, 12 anos, e o seu pai, durante um protesto. Observe melhor o gráfico. Depois do acordo de Camp David, que firmou a “paz dos bravos”, nas palavras de Iasser Arafat, a mortandade diminuiu. Não cessou, nem se inverteu o predomínio das vítimas palestinas, mas diminuiu. Agora, veja o que aconteceu depois de fevereiro de 2001, quando Ariel Sharon se tornou primeiro-ministro. O levantamento não cobre o que vem acontecendo desde a  Sexta-Feira da  Paixão, com a  ação de guerra  em curso. Os palestinos mortos já não são sequer algarismos de pé de notícia. As autoridades militares israelenses não informam quantos mataram. Os relatos se tornaram imprecisos. Mas, acredite, são seres humanos, com rosto, nome e sobrenome. Têm data de nascimento, em geral bem recente. Tinham qualidades, defeitos, talentos, amores, esperanças. Talvez algo possa estar mudando nessa área. As draconianas restrições impostas pelo governo Sharon ao trabalho da imprensa tiveram péssima repercussão. Os correspondentes estrangeiros agora percorrem a Cisjordânia ocupada, vão a Ramalah, a Belém, e se deparam com fatos e imagens que nenhum jornalista que se preze pode calar. É verdade que cada jornalista tem atrás de si um editor, que tem atrás um proprietário, que tem interesses a defender. Mas, quem sabe, o mundo comece agora a ver os rostos da maioria invisível dos mortos do conflito. (*) É JORNALISTA E ARTISTA GRÁFICO

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