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Nº 5759
Opinião

Pescadores do asfalto

MARCOS DAVI MELO * Eis que as chuvas de inverno chegaram. Espaçadas em pequenas pancadas, normalmente nas madrugadas e nos começos das manhãs, vêem e vão lépidas, fagueiras e sem maiores compromissos, deixando no ar uma sensação perfumada de renovado fre

Por | Edição do dia 12/04/2002 - Matéria atualizada em 12/04/2002 às 00h00

MARCOS DAVI MELO * Eis que as chuvas de inverno chegaram. Espaçadas em pequenas pancadas, normalmente nas madrugadas e nos começos das manhãs, vêem e vão lépidas, fagueiras e sem maiores compromissos, deixando no ar uma sensação perfumada de renovado frescor, como as moças recatadas de uma página de Stendhal. Com as chuvas da estação, chegam os humores de inverno. A canícula do verão se reduz, a temperatura apresenta-se mais agradável e as primeiras horas do dia são das mais aprazíveis. A natureza como que se renova, em viçosa e pujante umidade. Em um dia destes, como que feito de encomenda para alentar a alma, apenas nascia o sol no horizonte, preenchido por um conglomerado de nuvens prestes a despejar o seu conteúdo nos madrugadores da orla, dirigia-me para a rotineira caminhada, quando na mansidão do mar da Pajuçara, já perto do Alagoinhas, um redemoinho gigantesco, a turvar as plácidas águas, chamou-me a atenção. O redemoinho plasmava-se rapidamente em diferentes formas. Ora uma circunferência, logo um triângulo, depois um retângulo. Todos irregulares e desfeitos tão logo se formavam. Inquieto, movia-se rapidamente para lá e para cá. Para o largo e para a beira-mar. Ferviam as superfícies das águas por onde a metamorfoseante massa aquática passava. Em pouco tempo irromperam do redemoinho os saltos para fora da água. Os espasmos. As contorções desesperadas. O redemoinho fervilhante, imenso cardume de manjubas, peixinhos pequenos e frágeis tentava por todas as formas possíveis escapar do apetite voraz do cardume de sequiosos xaréus. São os eventos da estação. Com o inverno que se inicia e a temperatura das águas que se reduz, os cardumes de peixes de alto-mar, usualmente refratários a entrar na laguna da Pajuçara e a se aproximar da praia, vão à caça em busca dos peixinhos e se arriscam por sítios antes proibidos. Em seu afã de animal predador e esfomeado, aproximam-se assim perigosamente da praia e das mãos dos pescadores. É o preço que pagam para perpetuar as leis da natureza, onde os maiores sempre comem inapelavelmente os menores. Como em uma república abaixo da linha do Equador, onde em terra firme, a aparente separação entre as espécies racionais e irracionais irremediavelmente sofre pesado revés nesta época e, a comilança, franca e aberta carnificina, apenas começa e se prolongará até outubro ou novembro, dependendo da primeira pescaria. Os muitos cardumes de peixes pequenos, mais uma vez, vão ser tragados sem dó nem piedade. Tentem escapar, nadem para onde nadarem. Estrebuchem. Serão comidas vivas todas as miudezas com e sem escama e, até alguns maiores, que se extraviaram do grande cardume. Os peixes grandes vão enguli-los, sem se engasgar com nenhuma espinha. E os pesca-dores, predadores de almas mais metálicas que seus molinetes, sem remorsos, vão apenas selecionar o espécime que vai liderar a chacina. Aquele que se adaptar melhor à insaciável gula dos pescadores profissionais viabilize a pescaria. Pragmáticos, já escolheram o seu peixe-rei para o momento. Mas, cientes do poder e da força que os mantêm firmes e inabaláveis manipulando os cardumes – almas e corações tão frios quanto metálicos -, decidirão no momento e na hora que lhes convier, se este mesmo ou outro qualquer, de sua inteira confiança, será o escolhido final. São as leis da natureza. Animalescas, sim, mas consagradas entre nós. (*) É MÉDICO

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