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Entremontes ( VIII ): o Remanso

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Quando chegamos ao Remanso, já era próximo da hora do almoço. Jacqueline, nossa anfitriã, nos aguardava com uma jarra de suco de limão e capim-santo, plantados e colhidos na própria chácara.

Tratamos de nos acomodar em dois quartos do casarão, tomamos banho e “fomos socorrer as urgências do estômago”. Nesse meio tempo, tivemos a felicidade de conhecer as pessoas que trabalham com Jacqueline no Remanso: seu Valter, de quem já falei, e as “meninas” Arlene e Jeane, que ajudam a manter a ordem, a limpeza e o pleno funcionamento do casarão e das demais dependências da pousada.

Já em nossa primeira refeição no Remanso, concluímos que Jacqueline, Arlene e Jeane não estavam para brincadeira. Meus planos de manter a parcimônia alimentar nas festas de fim de ano iriam, claramente, por água abaixo, alcançando a correnteza do riozão que avistávamos das mesas, sempre fartas e bem-postas, distribuídas nos alpendres sudeste (para o almoço) e sudoeste (para o café da manhã e jantar) da casa.

Mais que satisfeitos com as iguarias do Remanso, acabei descobrindo outro truque da anfitriã para arrebatar a fidelidade de seus hóspedes. Em centenários e imensos baús, legados por seus ascendentes da família Rodrigues (paterna) e Britto (materna), ela reserva vinhos de boa safra e qualidade. No fim das contas, tomamos os vinhos que levamos e desfalcamos também um dos baús. Depois de fartar-me como um glutão, no primeiro almoço no Remanso, precisei de um cochilo prolongado. Quando acordei, por volta das quatro da tarde, meu filho já me aguardava, ansioso pelo banho de rio. Aproveitei a calmaria da casa, peguei mais vinho e descemos a escadaria defronte ao casarão até a “prainha” do Remanso. Concordamos, eu e Eduardo, que aquele foi o melhor ponto de banho no rio que conhecemos desde o início da pandemia, em março de 2020, quando nos exilamos no Sertão do São Francisco. Não tardou e o restante do grupo se juntou a nós. Na prainha do Remanso, o caboclo-d’água não se detém em estripulias. A violência da correnteza, os temidos redemoinhos, tão comuns entre Piranhas e Canindé, não existem ali. Literalmente, estávamos em um doce remanso do São Francisco. Antes do sol se pôr, os mais velhos subiram. Assustados, em parte, com os voos rasantes de um casal de quero-quero, incomodado com os “invasores” próximos a seus ninhos. Eu e Eduardo decidimos aproveitar mais o último arrebol de 2021. Subimos no “meteoro do Remanso”, forma engraçada como meu filho denominou o penedo que existe diante daquela miúda enseada. Talvez com o concurso do vinho, do murmúrio da correnteza, do farfalhar do vento na Caatinga e da noite que nascia plenamente iluminada, demoramo-nos bastante sobre o “meteoro”, apreciando o espetáculo do céu noturno no Sertão. O pedregulho conservou uma temperatura agradabilíssima. Cheguei a chamar atenção de Eduardo para um fato inusitado: a pedra tinha uma tez aveludada à noite. Devo assinalar que, naquela ocasião, nada consumi além de vinho. Quando subimos ao casarão, uma grata surpresa: somou-se ao pequeno grupo uma nova hóspede, Ana Cecília Agua de Melo, uma jovem paulista, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, que trabalha com preparação de originais em grandes editoras do Sudeste. Ela estava, há algumas semanas, excursionando por Alagoas, terra de sua família paterna. Todos gostaram daquela moça pálida, discreta, de aparência frágil, muito gentil, com quem mantivemos conversas inteligentes e agradáveis. Em alguns momentos, aquela noite de Réveillon ganhou tons de tertúlia literária. Ana acabara de trabalhar em uma nova edição do “Morro dos ventos uivantes”, da Emily Brönte. Não faltaram trocas. Tomei nota de alguns autores do gosto dela, indiquei outros. Concordamos sobre a importância e a beleza de trabalhos como o de Antonio Candido, Maria Lúcia Dal Farra e Francisco José Dantas. Travamos, enfim, o tipo de conversa de que gosto, sem que ninguém precisasse vomitar erudição. Tudo muito despretensioso, leve e, ainda assim, riquíssimo. À meia noite, brindamos a chegada do Ano Novo e nos fartamos com o caprichoso banquete preparado por Jacqueline, Arlene e Jeane. Lembrei-me de amigos queridos, dos quais estou apartado desde o início da pandemia. Terezinha adoraria aquele lugar, pensei. Mais cedo quis ligar para ela, para Ibarê, para meu pai e outros familiares, para André, Francisco, Chris… Não havia um único pontinho de sinal da operadora ou de internet. Plenamente confortável naquela noite, no Remanso, pensava: quantas camadas de memória tem esse lugar? Quantas gerações de diferentes famílias aqui viveram? Pudessem contar o que já viram e ouviram essas grossas paredes, essas velhas árvores… Se espectros dos antigos moradores por ali perambulam, devo crer que simpatizaram conosco. Não fomos incomodados. Sentimo-nos em casa. Há tempos, inclusive, não dormia tão bem quanto naquela noite, no casarão, longe do barulho dos “paredões”, das combatidas aglomerações, do foguetório típico da ocasião. Principiamos o ano em um paraíso da margem esquerda, de corpo e alma lavados pelas águas do Velho Chico.

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