Existe consciência disso
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Por Marcos Davi Melo - médico e membro da AAL e do IHGAL | Edição do dia 30/07/2022 - Matéria atualizada em 30/07/2022 às 04h00
John Kennedy estava encantado com um brinquedo novo e o apresentou aos seus convidados. O presidente apertou um botão escondido na lateral de sua mesa, acionando um microfone ali no Salão Oval e um gravador no porão da Casa Branca. Era a estreia de uma engenhoca secreta que registrou 260 horas de conversas sigilosas. Coincidentemente, a primeira gravação é sobre o Brasil. Das 11h52 às 12h20 de 30 de julho de 1962, debateu-se o futuro e a fritura do governo João Goulart. O embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, disse que Jango estava “dando a porcaria de pais de graça para os...” “comunistas”, completou Kennedy. O assessor Richard Goodwin ressaltou: “Podemos muito bem querer que os militares brasileiros tomem o poder no final do ano”. Isso quase dois anos antes do Golpe de 64.
Desde 1961, com a chocante renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de Jango, as reuniões de Kennedy sobre o nosso país eram monotemáticas: como impedir que o Brasil se tornasse uma gigantesca Cuba? Documentos oficiais revelados nos últimos anos acendem luzes sobre as polêmicas entre os historiadores do papel dos EUA no golpe de 64 e durante a ditadura militar que durou 21 anos. Pode-se resumir: Jango caiu com um empurrão dos Estados Unidos. O governo americano instigou os militares, financiou a oposição, boicotou a economia e tinha tropas e navios prontos se fosse necessário intervir. Não foi. Em boa parte, graças ao governo ruinoso de Jango, que, associado à indisciplina militar de marinheiros rebeldes, tinha contra si uma elite financeira autoritária, porém cosmopolita, a cúpula da Igreja e a maioria da grande mídia. Cuba exportava a revolução comunista apoiada por Moscou e elucubrava-se que o Brasil sucumbisse ao comunismo. Hoje nada disso existe. A URSS comunista caiu por suas próprias mazelas, o regime cubano sobrevive precariamente. No Brasil, o último grande comunista foi Oscar Niemeyer, e os EUA dão inquestionável aval ao processo democrático eleitoral brasileiro, renovado explicitamente por seu ministro da Defesa em Brasília. Mas existe uma minoria radical sonhando com golpe - e para fazer o que? O que está na mesa é um autoritarismo retrógrado, que, pela força da gravidade, se aproximaria do velho salvacionismo latino-americano, exemplificado hoje na Venezuela. O coronel Hugo Chávez era um oficial moralista e aventuroso. Eleito presidente, inventou o bolivarianismo e deu no que deu. A carta de golpes do século passado saiu do baralho. Vale dizer o que escreveu o general Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército no dia 20 de março de 1964: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos. Elas existem para garantir os poderes constitucionais e sua coexistência”. Naquele tempo não existiam milícias nas cidades e selvas do Brasil, enquanto hoje as milícias dominam bairros em cidades e associam-se ao crime na Amazônia, infiltrando-se na agenda dos agrotrogloditas. Atualmente, qualquer movimento que ameace a democracia não deve obter apoio internacional, tornando o Brasil um pária mundial e jogando-o ao caos. A elite financeira, as Forças Armadas, a Igreja católica, a grande mídia e a maioria da população demonstram ter consciência disso.