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Nº 5824
Opinião

Reflexões em torno do caso Daniella Perez Um ensaio criminológico

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Por José Belga Assis Trad - advogado, pós graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e em Direito Penal Economômico | Edição do dia 09/08/2022 - Matéria atualizada em 09/08/2022 às 04h00

A Lei dos Crimes Hediondos entrou em vigor no Brasil em julho de 1990. Em sua redação original, eram considerados crimes hediondos apenas os crimes de latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte e envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte.

A definição da hediondez de um crime acarreta uma série de consequências no tratamento que deva lhe ser dado, seja pelo Legislativo, que deve passar a observar se a pena prevista em lei é compatível e proporcional com o seu caráter hediondo, seja pelo Judiciário, que, ao executar a pena no caso em concreto, deve observar o rigor dado ao Legislador, especialmente no que diz respeito aos períodos maiores de cumprimento da pena para fins de obtenção deprogressão de regime e livramento condicional.

Estou de acordo com aqueles que dizem que o endurecimento das leis penais não reduz a criminalidade. Mas, há casos em que a finalidade retributiva da pena justifica, por si só, um maior rigor da pena de prisão, respeitados, evidentemente, todos os direitos humanos do(a) sentenciado(a), não atingidos pela privação da liberdade.

Do Legislativo ao Judiciário, o Brasil é um país que se preocupa muito em punir a bagatela. Forças policiais que poderiam estar atuando para solucionar crimes violentos e que devastam a vida de vítimas e familiares estão mobilizadas para autuar o pequeno traficante da esquina.

As Varas Criminais e os Tribunais se abarrotam de processos contra pequenos traficantes e mulas, punindo-os com um rigor que não tem qualquer racionalidade. Esse contingente de pessoas, muitas vezes réus primários, vai parar nos presídios e, por questão de vida ou morte, precisam se submeter ao jugo da facção dominante. A política criminal da guerra às drogas, que se fundamenta na necessidade de garantir a saúde pública, acaba produzindo muito mais insalubridade, violência e mortes do que o próprio consumo. Pesquisas mostram que as apreensões seguem batendo recordes e mais recordes. Mas, o consumo também.

Não vejo, por isso, qualquer sentido em continuar criminalizando e punindo o tráfico da forma como o Brasil vem fazendo hoje. Menos ainda quando essa mobilização acaba produzindo mais violência e deixando de lado a elucidação de crimes violentos, estes sim merecedores de atenção e rigor.

As estatísticas mostram que a maioria dos crimes violentos no Brasil não chega sequer a ser solucionada, a despeito do esforço heróico empreendido por alguns policiais que trabalham país afora sem os recursos humanos e materiais que precisariam para desempenhar o seu trabalho.

Faço essas reflexões depois de assistir a série Pacto Brutal, um impactante documentário do caso Daniella Perez, considerado um divisor de águas no tratamento penal dado ao crime de homicídio qualificado no Brasil. Antes dele, acreditem, o homicídio qualificado não estava incluído no rol dos crimes hediondos.

É notória a luta encampada pela Glória Perez, mãe da Daniella, para colher assinaturas da população para que tivesse início no Congresso Nacional um projeto de lei de iniciativa popular para tornar o homicídio qualificado crime hediondo no Brasil. E ela conseguiu, fazendo com que o legislador brasileiro passasse a incluir o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos.

É impressionante a coragem com que a Glória Perez enfrentou a tragédia, as suas repercussões e especulações e a frieza dos assassinos. Impressiona ainda mais a sua lucidez, qualificada pelos anos da experiência envolvida com o processo da sua filha, para tratar de temas importantes das ciências criminais e que afetam a sociedade como um todo. Foi muito feliz a Glória quando disse que, antes da alteração legal, o Brasil estava tratando com maior rigor os crimes contra o patrimônio do que os crimes contra a vida.

A alteração legislativa teve a sua importância para punir de forma proporcional os crimes de homicídio qualificado, mas só isso não basta. O Brasil segue produzindo violência em larga escala. Houve um retrocesso nos últimos anos neste tema, notadamente diante da política de estímulo de acesso às armas à população civil. Precisamos superar os preconceitos e demagogias e enfrentar com as estratégias adequadas e racionais a violência e suas causas.

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