Opinião
CORAGEM DE MAMAR EM ONÇA .
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Zé Pitu era um cabra de fé. Prestativo, jeitoso, trabalhador, pau pra toda obra, mas tinha dois grandes defeitos: era ignorante e mentiroso. Relevando isso, era um empregado que qualquer patrão queria ter.
A grosseria era tanta que chegava a ser engraçado, motivo de comentário e de gozação. Era necessário saber lidar com o cabra, pra não receber desacato. Qualquer coisa que se mandasse fazer, tinha que ser muito bem dita, explicada nos mínimos detalhes, pra não ser preciso repetir a ordem. Uma ordem dada duas vezes, era imediatamente questionada. O bicho – era realmente um animal – se o patrão insistisse dando a mesma ordem pela segunda vez, respondia prontamente: “Vosmecê acha que eu sou burro ou tô cas ouça intupida ou ruim, pra vim medizê de novo tudo o que diche nestante”? E por aí ia, a conversa se estendia e não havia acordo. Se desse corda, era pior que cacimba, engolia até uma horas, isso quando não começava a mentir. Eram histórias cabeludas, contadas com tanta segurança que pareciam verdadeiras, embora impossíveis de ser.
Morava perto da casa grande. Bastava um grito e ele riscava pra atender quem o chamasse. Quando em casa estava, depois do serviço, acendia seu cigarro de fumo de corda e sentava na porta pra fumar e contar lorota. E ai de quem duvidasse das suas aventuras ou, sequer, achasse graça e risse das histórias. O cabra ficava brabo e, se brincasse, botava pra correr, porta a fora. “Por acauso tem argum paiaço aqui, prumode contá lorota pra vosmecê ri? Ou ta rindo da minha cara? Se a histora não é do seu agrado, risque daqui enquanto é tempo”.
Sua esposa, D.Zefa, ajudava na cozinha e nos serviços da casa grande. A coitada mal falava, acostumada com o temperamento do Zé, que só permitia que ela se expressasse, quando era pra concordar com suas mentiras. Aí ele dizia, de boca cheia, “Zefa sabe das coisa e se ela jurá de pé junto, foi, é ou tá pra ser”. Mas quando era pra realizar seus desejos, fazer suas vontades, a conversa mudava de rumo. Várias vezes ouvi Zé falar: “ A muié foi feita pra cuidá da casa, dos fio e seuvi o marido e inda se dá por sastifeita de ter arranjado um.” Zefa olhava pra ele e sorria, não adiantava ter outra reação, ir de encontro a tanta ignorância, só aumentaria o problema, melhor viver na paz, assim dizia ela.
Sexta-feira à noite, o patrão chamou o Zé e ordenou que fosse à feira, no sábado, vender um cabrito e com o dinheiro da venda, fazer a feira da semana, o que já era uma tarefa corriqueira. Definiu o valor da venda do animal e disse que o que ele conseguisse a mais seria dele. Zé levantou cedo, amarrou uma corda no pescoço do bode, colocou um cetão na cabeça e partiu para a feira. No meio do caminho, parou na beira de um açude para dar água ao animal. Soltou a corda que o prendia mas esqueceu de amarra-lo. Sentou e encostou-se no tronco, em baixo de uma frondosa ingazeira e, enquanto descansava enrolando seu cigarro, não percebeu que o animal, aos poucos, se afastava, até entrar na densa vegetação que margeava o açude e desaparecer.
Quando Zé deu por conta, olhando em volta, estava só. E cadê o cabrito? Ficou desesperado, imaginando não conseguir encontrá-lo e, consequentemente, não poder fazer a feira pois, sem cabrito e sem dinheiro, o que iria fazer?
O ruido do balanço de umas folhas, denunciou o fugitivo. Partiu com dois quentes e um fervendo e embrenhou-se no mato em busca do animal. Retornou todo latanhado, roupa rasgada, o sangue escorrendo pelos braços, mas puxando o danado do cabrito. Lavou-se e partiu pra feira, matutando na história que iria contar ao patrão, pra justificar tantos ferimentos e arranhões, além da demora em cumprir sua missão antes de voltar pra fazenda.
Mente fértil, vasto repertório, já incorporado através dos vários anos de exercício pois, Zé já tinha mais de quarenta, surgiu em sua fantasiosa mente, a imagem da jiboia gigante, mas, vou deixar pra contar de uma só vez, quando ele voltar para a fazenda.
Chegando na feira, anunciou a venda do cabrito e logo apareceram compradores. Negócio feito, trocados no bolso e compras que encheram o caçuá, partiu de volta pra casa com a história já montada, prontinha para contar.
O patrão, na varanda a esperar, quando viu Zé apontar, foi logo chamando a família para a história escutar.
Zefa, que estava na cozinha pra comida preparar, ao ver seu marido todo latanhado, roupa rasgada, perguntou o que havia acontecido. Zé respondeu: “savexe não qui pruqui tá tudo bem. Caminhe pra varanda, prumode eu falá de uma vei só”. Zefa, prontamente obedeceu e foi se juntar aos patrões para saber do ocorrido.
Zé, com fala forte, convincente, sentou-se no batente e, como se estivesse num palco de teatro, começou a encenação: “Vosmecê num imagina o que se assucedeu no camin de ida. Chegando aculá no açude, o bode danou-se a berrá, dizendo na língua dele qui tava cum sede. Vosmecê sabe qui eu intendo das língua dos bicho e cum eles sei cunveusar. Pois, pronto, entrei cum bode nas água, pra nós beber e refrescar. Quando oio di lado, sai d’água uma jiboia gigante, do tamanho dum elefante e veio pra cima de noi. Aí, num prestou não. O bode frôxo, partiu pra fora cum medo mai eu qui sô valente, enfrentei a dita cuja só cas mão, poi nem facão eu levava. A bicha era tão grande e gorda qui eu num conseguia nem abaicar cus braço. Daneilas unha no couro e a bicha me arranhando cuns dente e eu arranhando a bicha, murro prá lá, tapa pra cá, até qui dei uma bicicreta, cuma os jogadô fai no futebó, cus pé bateu na cara da cobra e ela rolou pra lá. Quando a bicha afundou, azuniu tanta água pra cima quinem um baico quando afunda, aí até mermo massustei. Saí d´água prumode pegá o bode qui me oiava cus oio esbugaiado, assustado mai orguioso di vê tanta valentia e corage num home só. Mermo todo raigado i latanhado, partimu pra feira pra minha missão compretá, prumodi o patrão sabê qui Zé Pitu é di cumpri o qui premete, é um caba de fé i tem corage de mamá in onça.”