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Nº 5822
Opinião

Política, liberdade e convivência: uma trilha a seguir

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Por Otávio Santana do Rêgo Barros - general de Divisão da Reserva | Edição do dia 28/09/2023 - Matéria atualizada em 28/09/2023 às 04h00

Na década de 1950, Hanna Arendt foi convidada por seu editor, Klaus Piper, a escrever um livro que introduzisse a política no pensamento do cidadão comum.

Ela acolheu o projeto com entusiasmo. Tinha a compreensão de que a política se baseava na pluralidade dos seres humanos e, portanto, servia para organizar e regular a convivência entre diferentes pessoas em todos os perfis da sociedade.

Hanna Arendt afirmava que a desgraça da política no século XX não estava apenas no surgimento de regimes totalitários escabrosos, dos quais ela própria foi vítima, e que eliminaram a liberdade como bem essencial ao indivíduo.

A cientista política asseverou que o autoritarismo extremo também representava uma ameaça para os sistemas políticos que se consideravam liberais.

Por diversas razões, Hanna Arendt adiou a conclusão do projeto e, por fim, abdicou de terminá-lo.

Entretanto, ela esboçou diversos rascunhos sobre a proposta, que foram posteriormente resgatados e organizados por Ursula Ludz na obra “Hanna Arendt: O Que é Política?” (Bertrand Russell, 2021).

Hanna Arendt defendia que não poderíamos simplesmente nos contentar com o desaparecimento do fascismo, do nazismo e do comunismo.

A bactéria do autoritarismo não havia sido erradicada, mesmo com a derrota do extremismo após a Segunda Guerra Mundial. O comunismo ainda estava presente e “saudável” naquele momento.

Ela nos alertava que a restrição da liberdade na comunidade, a repressão da espontaneidade humana e a corrupção do poder por meio da violência seriam ameaças constantes para a política dos sistemas vigentes.

Se estivesse viva, certamente estaria angustiada com a validação de suas ideias no ambiente político e social do mundo moderno.

Hannah Arendt questionava: qual é o sentido da política? E logo afirmava que o sentido da política é a liberdade. No entanto, diante da imaterialidade da pergunta, ela a reformulou: a política ainda possui algum significado em nossas vidas?

Quando a pluralidade humana, no momento em que o indivíduo contemporâneo se incorpora como agente da política, é desidratada e reduzida a dois grupos representados como “nós contra eles”, é preciso deixar de culpar o mundo, pois a crise do mundo não reside no mundo, mas no próprio homem, que se desviou dos trilhos da boa convivência política.

Recorro, agora, ao pároco da igreja que frequento em Brasília, um mestre na retórica. Ele é relativamente jovem, possui um alto preparo intelectual e baseia suas pregações em conhecimento teológico de primeira grandeza.

Sua homilia é uma lição de vida. Hannah Arendt o ouviria com profunda atenção.

As manhãs de domingo se tornaram uma aula com inspiração para os seguidores da doutrina cristã ali propagada, servindo como um meio para realinhar homens e mulheres.

Nos últimos dois sermões, ele abordou passagens relatadas pelo evangelista Mateus.

Na primeira delas, recordou que se um irmão pecar contra você vá corrigi-lo em particular. A consequência do escárnio público com a divulgação de disputas, xingamentos inapropriados e falta de sustentação racional, como costuma acontecer no dia a dia, não é uma atitude que ajuda na reconciliação entre beligerantes.

Na outra, lembrou que Deus perdoa aqueles que Lhe devem, mas exige daqueles que Lhe devem que também perdoem seus próprios devedores.

Desejar compreensão dos algozes, como um direito natural do devedor, só se torna um justo direito se, no momento de portar o chicote, o devedor perdoado não açoitar o seu próprio devedor.

Portanto, se a política ainda possui algum significado, como questionou Hannah Arendt, ela serve para buscar a harmonia entre os diferentes em ambiente de liberdade genuína.

Há formas racionais de “viver com” semelhantes e elas estão à nossa disposição.

Viver com a ideia de ser o melhor para o mundo, em contrapartida de ser o melhor do mundo. Aceitar a pluralidade social. Ter serena coragem moral para divergir de opiniões. Por fim, compreender a subordinação humana diante da hierarquia de Deus e até dos homens.

A sociedade brasileira, como Santo Tomás de Aquino, precisa fazer a sua parte.

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