Almir Castro Barros: uma poética nada inocente
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Por Pedro Américo de Farias. Escritor | Edição do dia 13/10/2023 - Matéria atualizada em 13/10/2023 às 04h00
Poeta, leitor e pensador de poéticas numa realidade contemporânea. Bem lido por uns, mal lido por muitos. Cidadão aspirando ares salubres e insalubres, solidariamente, com toda a humanidade, que se move no sacrifício cotidiano da luta pela sobrevivência, entre pandemias, genocídios e carnavais. Autor de alguns livros, sem inveja de quem o seja de cinquenta ou sessenta.
Enganou-se quem, declarando-se amigo e companheiro, acreditava ser Almir Castro Barros, da sua geração, “o único poeta que não perdeu a inocência”. Chego a pensar que o declarante desconhecia, pelo menos, três personas (nenhuma inocente) num único ator: primeiro, o homem em si, com sua forma discreta de bom ouvinte e observador, não apenas nas rodas de conversa entre amigos e poetas, mas e sobretudo, da vida do povo em seu dia-a-dia de intermináveis agruras; segundo, o poeta de toque surrealista percebido por Alberto da Cunha Melo, “que não utiliza o automatismo psíquico, pois sua expressão é duramente trabalhada e nem se entrega ao fantástico por puro amor ao fantástico”; por fim, o experimentador de pequenos ensaios críticos destinados à compreensão dos postulados da crítica e da teoria literárias.
Conheci Almir Castro Barros pelos anos 1970 e por algumas décadas tivemos frequentes e agradáveis encontros, quase sempre em companhia do grupo da UBE-PE. Eram conversas animadas por leituras de poemas, cantos (com os imperdíveis solos de voz de Almir), e muitas histórias, sem falar das boas rodadas de cervejas. “El tiempo pasa e nos vamos poniendo viejos” (Pablo Milanês). Trilhamos diferentes caminhos, mas como “de tudo fica um pouco” (Drummond), permaneceu entre nós uma amizade, que eu, particularmente, não separo da admiração que aprendi a cultivar na pessoa e na obra desse singular poeta.
Este livro mais recente, “À beleza, quase adeus” (2023), me trouxe, além da esperada maravilha dos poemas, uma grande surpresa: os vinte e um textos críticos, que eu desconhecia totalmente. Destes, treze publicados pelo Diario de Pernambuco (2003 – 2013), três pelo Jornal do Commercio (1997, 2002, 2009); os demais avulsos. Eu sabia de um poeta Almir que vez ou outra me falava de suas leituras, envolvendo grandes nomes da poesia inglesa, francesa, norteamericana, peruana. Era já um ótimo banquete para nossas vidas secas.
Tais artigos, agora publicados no livro, revelam um verdadeiro “Banquete de Babette” literário sobre temas, autores e autoras, das mais diferentes épocas e regiões do mundo, que o paladar de gourmet intelectual, que Almir representa, oferece aos seu leitores menos familiarizados com sua ampla seleção de poetas e prosadores, homens e mulheres. Já não será tão difícil perceber suas ‘afinidades eletivas’, pela riqueza de análise que ele, sem pretensão ao exercício da teoria e da crítica, exercita com ótima percepção do campo da criação literária. Distingue muito bem o que significa tradição e ruptura, conservadorismo e modernidade, invenção e embromação.
Não seria justo deixar fora desta pequena resenha um aspecto muito discutido na obra poética de Castro Barros. Que ele mesmo o apresente: “... a literatura que realizo através de poemas, se opõe inteiramente ao clichê usado, às vezes por alguns, de que escrevo para não ser entendido por muitos.” Há sempre, neste sentido, alegações semelhantes da parte de quem se acomoda com uma arte mais fácil de ser lida e compreendida, de quem padece vítima de certa preguiça mental. O próprio Almir comenta o historicamente conhecido caso de Sousândrade (1832-1902), maranhense que reagiu aos defensores de facilidades estéticas com vibrante bordoada: “Ouvi dizer já por duas vezes que o ‘Guesa errante’ será lido cinquenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinquenta anos antes.”
Jomard Muniz de Britto, ao ler “Um beijo para os crocodilos”, cunhou uma feliz resposta aos argumentos dos que preferem a arte fácil: “Se nosso sistema e estrutura da formação literária foram condicionados por uma oralidade a toda prova dos noves e nonadas, nosso poeta é difícil porque exerce a prática das recusas.
Tenho pra mim que, numa perspectiva inversa do conceito cômodo-imediatista de fruição, Almir Castro Barros escreve sabendo que as poucas pessoas que o leem, com razoável grau de fruição, terão sensível prazer de anunciá-lo a outras poucas que igualmente o anunciarão a mais outras poucas... É dele a palavra final:
“Se as vezes pareço hermético ou abstrato em minha expressão poética, é porque a engenharia da linguagem está sempre a exigir-me releituras e conselhos originários da escrita de estetas e teóricos literários lembrados em todos os tempos. Por isso, em meus livros (poucos), e neste último em particular (ele se refere a ‘Um beijo para os crocodilos’), a finitude expressional não interessa. Daí a luta: valorizar o assimétrico, contra prosaísmos poéticos inúteis, que podem ser o equívoco de muitos na atualidade.”