Opinião
Exempli gratia

MARCOS DAVI MELO * Aquele dono de armarinho era um sujeito muito esquisito. Os clientes chegavam para fazer as suas compras e nunca o encontravam no balcão. Precisavam o chamar aos gritos. Logo irrompia dos fundos da sua pequena loja, atendia os clientes e retornava prontamente para o seu refúgio secreto. A população da pequena cidade holandesa de Delft onde morava, especulava sobre as razões pelas quais Antony Leeuwenhoek permanecia a maior parte do tempo escondido: preguiça; feitiçaria; perversões sexuais? Todavia, o que entretia tanto aquele homem era a sua curiosidade científica. Artesão criativo, construíra um microscópio com o qual já esmiuçara entre outros o olho de uma barata, o estrume de seu cavalo e finalmente uma pequena gota de água de chuva depositada sobre a folha de uma planta de seu jardim. À luz daquele rústico microscópio obtivera uma visão assombrosa: miríades de diminutos seres, vivos e agitados que pulavam pela gotícula de água. Depois estudou o seu próprio esperma e viu pela primeira vez aqueles bichinhos cabeçudos e agitados, eram os espermatozóides humanos. Leuwemnhoek, que não era médico, descortinou naquele distante ano de 1676 um novo e fantástico mundo para a ciência. A sua contribuição inicial propiciou, a posteriori, a Pasteur, a possibilidade de aperfeiçoar as suas descobertas e salvar as culturas do vinho e da cerveja, ameaçadas por uma virulenta praga na França e criar as vacinas contra o antraz e contra a raiva, enfermidades até então incuráveis e de altíssima letalidade. Também o alemão Koch otimizou aqueles experimentos para identificar o bacilo da tuberculose, que ceifava mais vidas que qualquer outra enfermidade na época. As contribuições para o desenvolvimento da medicina, que beneficiaram e continuam beneficiando a humanidade, tiveram ocasionalmente a colaboração fortuita do acaso, como nos três casos anteriores, mas a persistência dos pioneiros, enfrentando as incompreensões e as resistências, foi fundamental para o avanço da ciência contra o obscurantismo. Esta tarefa ? contribuir para salvar vidas -, tem envolvido de tal forma tantos e tão abnegados seres humanos, que alguns exaltados juram que mesmo depois de mortos, certos discípulos fundamentalistas de Hipócrates não se conformam com o merecido repouso no céu e retornam para o meio dos vivos, somente para exercer o seu ofício. Destacam como exemplo um certo esculápio germânico, alcunhado Dr. Fritz, cujo plasma se incorporava em um caboclo de Caruaru, o Zé Arigó, para praticar cirurgias as mais variadas; segundos estes, sem anestesias sem cortes, sem nada. Não é de se estranhar, portanto, que em alguns setores da medicina onde, apesar dos avanços e conquistas, não se consigam concretizar muitos dos procedimentos disponíveis ? por falta de doadores, como os transplantes -, alguns poucos altruístas queiram partir para o exemplo maior: quando sucumbirem, doar não só o fígado, a córnea, o coração, mas sim todo o corpo. Seguindo o exempli gratia da medicina de países mais desenvolvidos cientificamente, como os EUA, onde a legislação facilita e existem estímulos, temos em Alagoas, o primeiro doador vivo e saudável de seu futuro cadáver. É um médico e, não por promessa ou desilusão, mas para que seu corpo seja útil ? servatis servandi, para os estudantes de medicina o dissecarem ? e não sirva só de alimento para os vermes. O sigilo sobre a identidade deste desprendido cidadão será mantido, até que o mesmo resolva transformar o seu ato, até agora do conhecimento só de sua família e de alguns poucos amigos, em fato do conhecimento geral, não por outra razão, mas pelo exemplo e estímulo que possa dar a outros doadores, sejam de órgãos, sejam de corpus in totum. (*) É MÉDICO