Legalidade e legitimidade
| Fernando Collor * A legalidade é o princípio jurídico em que se assentam os sistemas políticos democráticos, o que equivale a dizer, segundo ensina o prof. Paulo Bonavides, em seu manual, Ciência Política, que essa é a noção de que todo poder estatal
Por | Edição do dia 30/09/2007 - Matéria atualizada em 30/09/2007 às 00h00
| Fernando Collor * A legalidade é o princípio jurídico em que se assentam os sistemas políticos democráticos, o que equivale a dizer, segundo ensina o prof. Paulo Bonavides, em seu manual, Ciência Política, que essa é a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes. Esse é, portanto, o preceito que caracteriza o governo das leis, para distingui-lo do governo dos homens, em que a vontade do soberano do Estado absolutista não conhecia limites, o que levou Luiz XIV, rei de França, à famosa afirmação O Estado sou eu. A limitação do poder absoluto teve início na Inglaterra e na França por dois movimentos separados pela distância de um século: a Carta de Direitos inglesa, de 1689, e a Declaração dos Direitos do Homem francesa, de 1789. Ambas estabeleceram na prática os direitos e garantias individuais e asseguraram a separação dos Poderes do Estado, que caracterizam o Estado de Direito. O art. 16 da declaração francesa estipulava expressamente que toda sociedade em que a garantia dos direitos não está assegurada e a separação dos poderes determinada, não possui uma Constituição. Para os juristas, a legitimidade nada mais é do que, na lição do prof. Bonavides, a legalidade acrescida de sua valoração ou, ainda, nas palavras do mestre, o critério que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder a situações da vida social que ele é chamado a disciplinar. Tratando desse conceito sob o ponto de vista sociológico e político, porém, o prof. Niklas Luhmamm afirma que seria supérfluo dispor desse conceito apenas para poder dizer que as decisões justas são legítimas e que as decisões injustas não o são. Logo, o que distingue a legalidade da legitimidade é que a primeira diz respeito à conformidade com a lei, a ordem e a justiça, e a segunda refere-se à aceitação das decisões dos sistemas políticos. Neste sentido, normas que careçam da aceitação generalizada da opinião pública, ou pelo menos da maioria da sociedade, seriam ilegítimas, ainda que fossem legais, isto é, mesmo estando de acordo com a Constituição e as leis de cada país. Um exemplo clássico foi a adoção da lei seca nos Estados Unidos, aprovada por pouco mais da metade da população e rejeitada por pouco menos. Era uma medida legal, mas que se tornou, aos olhos da população, ilegítima, e por isso não vingou. O que diz respeito às decisões dos sistemas políticos, aplica-se também aos sistemas de governo, quer em sua investidura, quer em sua atuação. Dessa forma, a legalidade diz respeito à investidura do poder, e a legitimidade à sua atuação, ao seu desempenho. Outro aspecto essencial para distinguir os dois conceitos, diz respeito à sua própria natureza. A legalidade é um conceito absoluto: ou é legal ou é ilegal. Não se pode dizer que determinada decisão é mais ou menos legal do que outra. A legitimidade é um conceito relativo. Não se pode dizer que esta decisão é legítima e outra que se lhe contrapõe é ilegítima. Pode-se, sim, dizer que uma é dotada de maior grau de legitimidade do que outra, que teve menos aceitação. Exemplo característico são os impostos decretados por todo e qualquer governo. Se são aprovados pelo Legislativo, sancionados pelo Executivo e declarados constitucionais pelos tribunais, são legais, mas como são impostos aos cidadãos sem sua concordância, daí sua designação, são menos legítimos, por exemplo, do que leis que aumentem os salários e concedam benefícios à população. A diferença dos dois princípios serve, portanto, para avaliar os governos. Eles podem ser comparados entre diferentes países e um ser considerado mais democrático, porque sua aceitação é maior que sua rejeição, e outro menos democrático, porque sua rejeição é maior que sua aceitação. E o mesmo governo, em um determinado período, pode ser considerado mais ou menos legítimo do que em outro, dependendo do período em que é avaliado. (*) É senador e ex-presidente da República.