O piso sagrado da civilidade
| Pedro Cabral * Nessas calçadas alagoanas, Graciliano Ramos talvez tenha pensado um gesto. Conversado um pouco. Criticado o mundo. Nessas calçadas alagoanas, o povo já se sentiu, algum dia, urbanizado. Socializou seu sorriso. Já descansou seu olhar sobr
Por | Edição do dia 28/11/2007 - Matéria atualizada em 28/11/2007 às 00h00
| Pedro Cabral * Nessas calçadas alagoanas, Graciliano Ramos talvez tenha pensado um gesto. Conversado um pouco. Criticado o mundo. Nessas calçadas alagoanas, o povo já se sentiu, algum dia, urbanizado. Socializou seu sorriso. Já descansou seu olhar sobre o movimento ora sonolento, ora desumano dos que passavam. Nessas calçadas alagoanas, o povo desenhou salas de estar. Crianças fizeram pistas de velocípedes. Árvores sentaram moradia. Em todo esse tempo de urbanidade, calçadas se mostram presentes, demonstrando o caráter de civilidade do seu povo. Uma simples calçada e o pobre morador já se sente gente. Perguntem àqueles que preferem suas casas voltadas para a rua e não para a bela paisagem no fundo de suas casas. As calçadas são a ponte entre o público e o privado. A recepção da sociabilidade. Sonham ser tapetes dispostos à elegância do andar. Anseiam a sombra de uma árvore. Nem sempre isso acontece. Nem sempre. Poderiam ser uma peça de integração, como se fosse um elo de uma mesma corrente. Terminam mais expressando o sentimento individual do seu senhorio, nem sempre tão sociável assim. Por vezes, é o melhor teatro dos fuxicos. E não raro, ultimamente, é o palco da solidão. E assim, elas se transformam muitas vezes em fachadas de certas afirmativas desarticuladas com suas partes vizinhas. E de caminho, sala de estar, hall entre o privado e o público terminam por virar barreiras; aninham, como garagem despudorada, os frios carros, mais privilegiados do que gente; desviam os pedestres que ousam sair nesses tempos medrosos; revestem-se inadequadamente para o caminhar, para o estar, para se brincar, para se viver. Nossas calçadas alagoanas não têm as mãos dadas com a civilidade. Desse jeito, o sangue jamais correrá até o coração. Assim olhando essas calçadas, eu vejo um pequeno exemplo do mesmo sentimento que move nosso povo. A expressão civil que falta para se viver coletivamente. O muro entre a calçada e a casa prevalece. Acentua-se e engole a calçada. Esta se distancia. Nela já não se senta. Já não se brinca. As árvores encolhidas se sufocam. Essas calçadas precisam voltar a ser um único caminho, com uma mesma textura, com suas paradas obrigatórias para o gentil boa-noite e também para que aquele poeta possa pisar, senhor de si, as sombras dos que outrora outros trafegaram e respiraram a civilidade. (*) É arquiteto e professor de Arquitetura e Urbanismo da Ufal.