.
Quem tem boca... volta a Roma .
.

A contar da segunda metade dos anos cinquenta, o arqueólogo, professor, filólogo, músico, cultor dos clássicos, advogado, homem público e ensaísta pernambucano-alagoano Mário Marroquim (1896-1975), também ele, na juventude, seminarista, inicia, sistematicamente, a tradução de seu autor predileto: Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.). (A admiração, porquanto tamanha, levou-o, inclusive, a escolher o gentílico Túlio como prenome de um dos seus sete descendentes).
Conhecia com profundez o pensamento do filósofo, político e tribuno romano, grande divulgador das virtudes da ética estoica, cuja vasta obra enriqueceu a árvore filológica latina através de estilo próprio e das suas criações neologísticas tão caras às dimensões filosófica, científica e literária.
Da sua leitura, Mário verteria, para o vernáculo nacional, frases e máximas no fito de conceber um livro ambicioso, o qual, entretanto, permaneceu inédito por um bom tempo.
A princípio, o título de escolha do projeto fora “Dicionário de direito romano”. Depois, o idealizador circunscreveu o objeto e optou pela designação “O pensamento de Cícero”. No ano de 2020, publiquei o material em capítulo num dos meus livros (“Mário Marroquim: dos romanos aos matutos”).
Os dois bloquinhos com as notas marroquinianas de pesquisa e versões revelam quão miscíveis, ao longo de mais dum bimilênio, são as falas do vulgo e a norma culta.
Num artigo prévio (tanto erudito quanto autêntico), inserto no “Boletim Alagoano de Folclore” (Maceió, ano IV, n. 1-2, 1959, p. 24-26) e sob o batismo “Dos romanos aos matutos” (cuja intitulação, aliás, aproveitamos no subtítulo daquele nosso ensaio biográfico-analítico), Marroquim já apresentava a tese de romanização da fala brasileira, a mesclar em si os legados indígena, negro e lusitano (e, via as duas últimas heranças, o árabe e o latim).
“Sem o espírito latino, sem a tradição romana, a língua não teria força para perpetuar-se. Foi a cultura romana que prolongou pelos séculos afora o império romano, cujo espírito vive, ainda hoje, nos povos novilatinos”, argumenta, certeiro.
É na cultura popular onde iremos justo surpreender a longa duração, no românico, de Roma. Ora, a prosa de Cícero influenciou, no cotidiano das gentes, o português a partir da sua mensagem reflexivo-humanista. O avoengo antigo se flagra na literatura oral da sabedoria do povo (de sorte especialíssima, nas crenças e nos costumes).
“Ajustando-se aos tempos, ao meio, às condições novas, [os anexins romanos] continuam vivos entre nós, às vezes com outras roupagens, mas representando ideias e pensamentos que têm dois mil anos”, interpreta.
De Plauto (230-180 a.C.) a Terêncio (c.195-c.159 a.C.), de Lucrécio (c.94-c.50 a.C.) a Virgílio (70-19 a.C.), de Horácio (65-8 a.C.) a Ovídio (43 a.C.-c.18), de Petrônio (27-66) ao cicerone marroquiniano, os provérbios viajaram pelas centúrias: “Não existe coragem onde falta a razão”; “Contradiz-se o homem que não faz o que recomenda aos outros”; e seguem-se outras duzentas sentenças.