A golpes de machado
Não era para ter dado certo a vida do mulato de um morro no subúrbio carioca. Pobre, de saúde frágil, com pouco acesso à escola, ficou órfão de pai e mãe, tendo de vender doces para se manter. Gago, de baixa estatura, epilético, foi perseguido da infânc
Por | Edição do dia 23/10/2008 - Matéria atualizada em 23/10/2008 às 00h00
Não era para ter dado certo a vida do mulato de um morro no subúrbio carioca. Pobre, de saúde frágil, com pouco acesso à escola, ficou órfão de pai e mãe, tendo de vender doces para se manter. Gago, de baixa estatura, epilético, foi perseguido da infância ao início da maioridade pelo espectro da pobreza. Mas a cabeça não pensa aquilo que o coração não pede. A melhoria de sua vida era o que pedia aquele obstinado coração, e aquela cabeça maquinava táticas de como colocar por seu escabelo o adversário, a pobreza. Ora, se os desejos vêm do corpo, então posso fazer do conhecimento extensões do corpo para a realização dos desejos pensou. O conhecimento passaria a ser a sua arma, o seu machado para a luta. Lutou com palavras, o jovem Assis. Sua luta não era o choque entre os movimentos do punho da vida e sim a condução destes. Lutava a favor da palavra, não contra ela. De maneira autodidata, estudava. Aprendeu etiqueta com uma dona de padaria, estudou francês com um forneiro, sorveu os rudimentos do latim na igreja da Lampadosa quando coroinha; sem loas, aproximou-se de influentes do âmbito literário, possibilitando assim o ingresso na imprensa, casou-se apaixonadamente. Mais tarde, entre a burocracia e a literatura, conseguiu a proeza (como poucos) de aliar o ofício à prática de escrever. Escreveu tanto que alcançou o apogeu artístico na literatura, a presidência da Academia Brasileira de Letras, a referência na literatura mundial, um cargo público no Ministério da Agricultura, sem no entanto ter posto os pés numa universidade. Assim, às turras entre o espectro da pobreza e o machado de Assis, venceu Machado. A vida do mulato da casinhola do morro deu certo. Machado de Assis (1839-1908) é celebrado não só por ser um dos melhores escritores, mas sobretudo por seu exemplo de vida e superação. Quantos dos que não lêem (ou lêem) esta página já nasceram com as melhores condições de vida e em tudo põem dificuldade? Mais: quantos o nosso perjuro sistema econômico convenceu de que as suas vidas não darão certo? Muitos, provavelmente. Em ambos os casos há um espectro a golpear. Mas, uma vez forçados a lutar porque o melhor é não haver guerra lutemos para ganhar, como fez Machado a golpes destemidos de machado. (*) É estudante de Letras da Ufal.