Valor humano
Portas abertas para a liberdade: do manicômio ao cuidado humanizado

A Lei 10.216/2001 consagrou no papel aquilo que o 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, vem lembrando nas ruas anualmente (e não só): toda pessoa em sofrimento psíquico possui direito inegociável à dignidade. Reconhecer esse valor humano, sobretudo em quem convive com transtornos mentais graves e persistentes, é mais que empatia; é a base de uma sociedade que se quer justa. Recordar a data não é rito protocolar, mas convite a escutar as vozes que, por décadas, foram silenciadas atrás de muros, grades e correntes.
No cotidiano atual, essa escuta encontra endereço nos Centros de Atenção Psicossocial, serviços de portas permanentemente abertas onde o cuidado deixa de ser exílio e se torna território. No CAPS, a permanência não significa confinamento, e sim vínculo; o usuário transita, participa de oficinas, partilha decisões terapêuticas e constrói corresponsabilidade com familiares, profissionais e comunidade. Ao invés de “alta” definitiva, prevalece acompanhamento contínuo, capaz de amparar recaídas sem romper laços: escutas terapêuticas ampliadas escritas em plural e em combate à discriminação.
Mesmo assim, há estigmas que infelizmente ainda persistem. Expressões como “nega maluca”, “remédio de doido”, “se fosse doido estaria rasgando dinheiro”, “louco de pedra”, “pirado total” ou “casa de maluco” ainda ecoam em rodas de conversa, desacreditando subjetividades. Podemos (e, na verdade, devemos) trocar esses rótulos capacitistas por termos que devolvam humanidade: “bolo de chocolate”, “medicação para saúde mental”, “situação de vulnerabilidade”, “pessoa em crise”, “vivência de sofrimento psíquico”, “serviço de acolhimento”. A linguagem, afinal, é parte do cuidado: palavras podem agredir ou libertar.
Se hoje, em pleno século XXI, falamos em libertação no campo da saúde mental, devemos muito à Nise da Silveira, psiquiatra alagoana que, contra a lógica do choque e da camisa-de-força, inaugurou uma clínica fundada no afeto, na arte e na confiança. A sua rebeldia ética legou a nós, psicólogos, a responsabilidade de sustentar práticas antimanicomiais, denunciar violências simbólicas e recusar qualquer retorno ao modelo asilar.
Nosso dever profissional ganhou, assim, a forma concreta de militância do cuidado, onde cada sujeito vale muito mais que seu diagnóstico.
Para quem deseja compreender por que essa militância permanece urgente, vale mergulhar no livro ou no documentário “Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex, que expõe as feridas ainda abertas da institucionalização em Barbacena: mais de 60 mil mortes, histórias soterradas por descaso e preconceito. A obra não é relicário de horror distante; é espelho que reflete as consequências de negligenciar o sofrimento humano.
Lembramos que a liberdade de quem sofre é também a libertação da nossa própria humanidade: quando uma porta se abre para o cuidado, todas as outras — medos, ignorâncias, indiferenças — encontram frestas de luz. Transformemos, pois, empatia em ação e compromisso em rotina, porque em cada porta que se abre para o cuidado, um futuro mais digno encontra passagem.