Julgamento
O interrogatório

Hannah Arendt, depois de ter acompanhado para o New Iorque Times o julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann, em Israel, escreveu: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos nem sádicos, mas eram e ainda são extremamente e assustadoramente normais”. Delineavam-se ali os primórdios e a base do que viria a ser sua Teoria da Banalidade do Mal.
Nesta semana, tivemos o primeiro interrogatório do processo histórico que tem como réus o ex-presidente Bolsonaro e aliados, a inquirição do principal grupo apontado no “golpe de Estado”. Observou-se a demonstração de um líder buscando manter a relevância em seu campo político, caprichando no psicodrama sobre as agruras pessoais do poder. Argumentos objetivos novos contra as acusações não ocorreram. Bolsonaro repetiu o que já dissera inúmeras vezes e procurou enfatizar que tudo o que se discutia dizia respeito a questionamentos acerca das urnas eletrônicas. Sem esse debate “nós não estaríamos aqui”, disse várias vezes.
O ministro Alexandre de Moraes, obviamente, não concordou, mas manteve-se sereno, clima que permeou o interrogatório, pois a essa altura parece improvável que qualquer pedido de desculpas por “exageros” e “retórica”” vá tirar o relator do caminho proposto pela denúncia da Procuradoria Geral da República. No interrogatório, não se viram os epítetos agressivos que marcaram a relação do ex-presidente com o ministro, mas entraram mesuras como “vossas excelências” e até um convite a Moraes para ser o seu vice em uma improvável chapa para a Presidência da República as eleições de 2026. Provavelmente, aí,o capitão desagradou a uma parcela de seu seguidores que gostaria de ver a cabeça de Moraes num espeto metafórico ou real. O ministro, serenamente, declinou.
O depoimento teria validado o que Bolsonaro já tinha feito antes: a admissão tácita de que sim Ele buscou virar a mesa, falando com naturalidade de “ilações”, estado de sítio, como se debatesse a edição de medida provisória. Chegou a dizer que nada aconteceu porque “não tinha clima” para contestar, o que seria uma virtual confissão de culpa, exceto para alguém que acredite no verniz pouco crível de que o golpe de 64 seria constitucional.
Quando arguido sobre as manifestações de seus seguidores acampados em frente aos quarteis e ao Palácio do Planalto, sempre pedindo intervenção armada e golpe de Estado, respondeu que eles eram “malucos”.
Constatou-se ali um clima ameno, um jus sperniandi abrandado, digno de um episódio de pura formalidade que certamente não influenciará no processo, em que será julgado conforme a miríade de provas disponíveis. Tudo de acordo com as premissas e regras determinadas pelo Estado de Direito, dizem os ministros do STF. Os réus em julgamento nesse Grupo Crucial são na maioria pessoas normais e militares de alta patente, como Hannah Arendt, que radiografou no carrasco nazista Adolf Eichmann, mas se o “golpe de Estado” tivesse dado certo, poderíamos ter pelo menos 20 anos de ditadura de chumbo.