O ciclista
O carro que dirigia repentinamente dá um solavanco. Por pouco não torço os punhos. Faltou um quase nada para minhas mãos largarem o volante. Contenho a vontade de praguejar. Estava sozinho e a noite já começava a se impor sobre os últimos estertores da lu
Por | Edição do dia 20/11/2008 - Matéria atualizada em 20/11/2008 às 00h00
O carro que dirigia repentinamente dá um solavanco. Por pouco não torço os punhos. Faltou um quase nada para minhas mãos largarem o volante. Contenho a vontade de praguejar. Estava sozinho e a noite já começava a se impor sobre os últimos estertores da luz do dia. Vinha de uma unidade da Casal, onde estava averiguando serviços de manutenção das nossas equipes. Veja você, dulcíssimo leitor, como são os fatos e as ocorrências das nossas vidas, como o acaso rege a sua e a minha existência. A vida, amigo, é cheia de imprevistos e de peripécias. Duvida? Pois então observe como uma inspeção, sem nenhuma relevância, a um serviço despretensioso, abriu-me as portas para um evento dadivoso, que carregarei nas minhas recordações até meu arfar final. Estava, pois, naquela situação prosaica: mais solitário do que um eremita, em uma rua deserta, em um fim de tarde de uma sexta-feira, com um pneumático esvaziado. Devo aqui confessar, laborioso leitor, que tenho uma aversão abissal à tarefa de trocar pneus. Estou me preparando para a dolorosa labuta quando vejo surgir, das brumas da escuridão, um ciclista. Vinha direto em minha direção. Faço uma pausa para recordar a mim mesmo e ao cordato leitor de algo que o ser humano tem tendência a fazer: julgar as pessoas pelas suas aparências e não pelo que, de fato, são. Julgar pelas roupas e conforme o que possuem ou não. Essa é a verdade crudelíssima: vivemos no eterno dilema do ter e do ser. Procuro não perder a compostura e estoicamente aguardo o inevitável assalto, quando o ciclista, que já tinha estacionado ao meu lado, exclama com a maior candura do mundo parecia um anjo: Tá necessitado de ajuda, moço? Com o coração parecendo querer sair-me pela boca, respondo: Sim, meu caro, o pneu estourou. Ele desmonta da bicicleta e ajuda-me na troca do pneu. Enternecido com tamanha demonstração de solidariedade, procuro coloco a mão no bolso. Ele interrompe, segurando meu braço: Não carece. E pergunta: O senhor não é o Briseno da Casal? Exclamo: Sou sim! E indago, quase explodindo de curiosidade: De onde nos conhecemos? Uma vez o senhor me recebeu na sua sala e mandou trocar a rede da minha rua, afirma ele. Tento explicar-lhe que não fiz nada mais do que a minha obrigação. E aí, neste exato instante, ele afirma, enfático: Pode ter sido sua obrigação, porém, naquele instante, eu tive atenção. Dito isto, despediu-se. Vendo-o afastar-se, entro no carro, e com os olhos marejados, encontro dificuldades em dirigir. (*) É engenheiro e diretor da Casal.