O preço da ideologia
Impressões de dois Governos

Quando Cazuza compôs a letra de um dos seus mais conhecidos e melhores discos, certamente não imaginava que a frase lançada para invocar uma ideologia precisaria, décadas depois, de uma nota de rodapé. A “ideologia” que o poeta desejava não era dessa espécie áspera e indigesta que hoje se ostenta em palácios e parlamentos. A dele tinha cheiro de juventude e rebeldia, não o sabor metálico de decretos e tarifas.
Mas aqui estamos nós, debruçados sobre os noticiários, assistindo ao desfile de decisões governistas que, embora tragam a roupagem de um ideário econômico, vêm sempre acompanhadas do tempero amargo da ideologia política. É como se, a cada medida, o governante fizesse questão de temperar o prato com a marca do seu partido, mesmo quando o que se precisa, na verdade, é de um pouco de pragmatismo culinário.
Referimo-nos, como já se pode desconfiar, às recentes medidas de tarifação impostas a alguns países, entre os quais o nosso foi incluído. Eis que, em meio a uma conjuntura política mundial nada confortável, o Governo americano decide dar um “beliscão”, aparentemente pequeno, mas capaz de desencadear sintomas já conhecidos no nosso combalido campo econômico. Beliscão este que, diga-se de passagem, não deixa de ter algo de “teatrinho” de bairro, com direito a platéia dividida entre aplausos e vaias.
Independentemente de quantos levantem a bandeira em defesa do Presidente americano, como forma de desacordo com o Governo brasileiro; ou de quantos se precipitem a culpar Brasília por tudo, a situação não nos deixa nada confortáveis.
O contra-ataque possível do Brasil soa como aqueles capítulos de romance em que o narrador, entre cético e divertido, nos avisa: “E agora, senhores, veremos o improviso”.
Porque, sejamos francos, nosso governo já não anda bem das pernas, nem da cabeça, talvez. Um tropeço aqui, uma escorregada acolá, e o cidadão, atônito, descobre que a conta sempre lhe cai no colo.
Alguém poderá dizer: exagero, puro pessimismo. Mas não, caro leitor. É apenas a constatação de que, em certas alturas da história, os governos parecem sofrer da vertigem do “quase”. Quase planejam, quase executam, quase alcançam os objetivos. Nos Estados Unidos, com toda a sua maquinaria democrática, o governo ora avança como quem descobre um novo continente, ora recua, temeroso, como se a próxima eleição fosse seu naufrágio pessoal. Já por estas terras, nosso governo prefere a hesitação calculada, o jogo de cena, a esperança de que o problema se resolva sozinho ou, melhor ainda, que se esqueça dele.