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Nº 5901
Opinião

A fome e a porta para a rua

O beco era estreito, mas bem iluminado. As portas, elaboradas nas mais diversas formas de desenhos e de materiais, anunciavam as entradas dos barracos, que amontoados e assimétricos, constituíam o que nós denominamos de comunidade Mundaú, localizada na be

Por | Edição do dia 28/01/2009 - Matéria atualizada em 28/01/2009 às 00h00

O beco era estreito, mas bem iluminado. As portas, elaboradas nas mais diversas formas de desenhos e de materiais, anunciavam as entradas dos barracos, que amontoados e assimétricos, constituíam o que nós denominamos de comunidade Mundaú, localizada na beira da lagoa chamada pelo mesmo nome. A cena acontece rapidamente mas exerce um efeito dilacerante de um raio antes do estrondo de um trovão no meu cérebro e na minha alma: uma jovem mãe (com não mais que 16 anos) carrega um filhinho desnutrido. A criança está suja, seminua e choraminga pedindo algo para comer. A mãe a olha, estende a mão em sua direção, como quem vai pedir alguma coisa e diz: “Você vai me dar o dinheiro para eu comprar?” A criança olha para a mão vazia da mãe, aperta seus olhos miúdos e, com toda a raiva que pode ter tão pequenino ser, dá uma tapa na mão estendida da mãe. A mensagem é clara: ela, mãe, não tem nada a oferecer para matar a sua fome... a criança vai ter que se conformar em não ter o que precisa para sobreviver... ela vai ter de “se virar”. A antropóloga Maria Filomena Gregori nos diz que a “viração” é um termo referente à prática de “se virar” para sobreviver. Para crianças e adolescentes vítimas da pobreza, a “viração” acontece na rua, e é lá que o processo singular de suas vidas acontece. Nesta teia entrelaçam-se fome, frustração, ansiedade e opressão. E, a partir da construção do emaranhado desta teia, não é difícil compreender porque no decorrer de um curto espaço de tempo, o ambiente doméstico, abrigo da família e lugar apropriado para o desenvolvimento da identidade da criança, em alguns casos, é trocado pelo “agasalho das ruas”, pois como bem diz o João do Rio, “a rua agasalha a miséria”. É lá, na rua, que crianças e adolescentes trabalham em biscates, pedem esmolas, perambulam, exercem atividades ilícitas, enfim, sofrem e se submetem a vários tipos de violências, na luta titânica pela sobrevivência, sob a falsa percepção de viver em liberdade. Nas várias cenas cotidianas, a noção de direitos humanos é inexistente e muitas vezes ridicularizada frente à experiência contundente da desigualdade oriunda da matriz capitalista. Neste contexto, o nanismo das políticas sociais compensatórias contribuem para que esta imensa teia aprisione milhares de crianças e adolescentes. Não! Não me digam que isso é assim mesmo! Que a vida é cheia de oportunidades! Porque para estas crianças e adolescentes, desprovidas de seus mais básicos direitos e enclausuradas nos becos insalubres das favelas ou no labirinto das ruas, a vida se apresenta como uma imensa mão vazia a zombar de suas dignidades. (*) É professora da Ufal.

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