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quinta-feira, 30/10/2025 | Ano | Nº 6086
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Coração pulsante

O vazio na formação dos profissionais da atenção básica

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Há uma metáfora silenciosa que impera nos corredores das faculdades de saúde no Brasil: a “Diocese” do conhecimento, o ambiente hospitalar, de alta complexidade e especialização, é o ápice da carreira. Enquanto isso, a “Paróquia”, o território vivo, complexo e desordenado da Atenção Primária, é vista como um posto secundário. A persistente sensação de “despreparo” de médicos, enfermeiros, dentistas e fisioterapeutas ao chegarem às unidades básicas não é um fracasso individual, mas o sintoma de um fracasso coletivo da nossa formação.

A graduação em saúde, notadamente na Medicina, mas cujo modelo é seguido pela maioria das demais profissões, ainda é profundamente hospitalocêntrica. O estudante passa seus anos mais formativos imerso em um mundo de raras síndromes e tecnologias de ponta, enquanto os problemas que afetam 80% da população, como as condições crônicas e os sofrimentos psicossociais, são tratados como um apêndice.

O resultado é a produção de um “estrangeiro em seu próprio território”. Seja o médico, o dentista com foco apenas na cavidade oral ou o fisioterapeuta no músculo isolado, seus olhares foram treinados para ver fragmentos doentes e não a pessoa inserida em um contexto. Conceitos fundamentais para o SUS, como vínculo e territorialização, soam como teoria distante da “prática real”.

Outro pilar que desaba é o trabalho em equipe. Estudos de pesquisadoras como Ligia Junqueira e Marina Peduzzi demonstram que o trabalho na Estratégia Saúde da Família é intrinsecamente coletivo. No entanto, a formação é rigidamente isolada. Médicos, enfermeiros e dentistas são educados em mundos paralelos. Aprende-se a ser “chefe”, nunca um “integrante”. Na prática, isso gera atendimentos fragmentados e sobrecarrega a rede.

O Programa Mais Médicos funcionou como um espelho brutal dessa crise. Estudos sobre a percepção desses profissionais revelaram que conceitos basilares como o acolhimento eram um desafio concreto. O programa evidenciou que a crise não era apenas de escassez, mas sobretudo de inadequação do perfil profissional. Ele tornou incontornável a discussão: é impossível ter um SUS forte sem uma reformulação radical da formação.

Diante de um despreparo tão enraizado, a saída está na Educação Permanente em Saúde. Diferentemente de cursos pontuais, é uma estratégia de transformação a partir da reflexão sobre o trabalho real. É aprendendo a resolver, coletivamente, os desafios do dia a dia que o profissional constrói as competências que a graduação lhe negou.

O despreparo para a APS é uma escolha política de um modelo de formação que não serve ao SUS. Enquanto a “Diocese” hospitalar for o ideal a ser perseguido, lançaremos profissionais bem-intencionados em um campo de batalha para o qual não receberam armas ou mapas. Precisamos de um currículo que valorize o cuidado, e não apenas a doença, para todas as categorias. Só assim a “Paróquia” da Atenção Primária se tornará, como deveria ser, o coração pulsante do nosso sistema de saúde.

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