Opinião
Reviver

Sinto sua presença mesmo semi-acordado. Ainda deitado, no digital, são 4h30. Espreita-me, vela-me ou simplesmente me olha? Pela janela, vejo-a, esplendorosa nesta hora em que suas irmãs já não concorrem e o rei não apareceu de todo. É a Dalva. Será por eu ser marciano, nascido em março, mês dedicado a Marte? Mas adormeci. Quando, minutos após abro os olhos, já é dia. Que pena. Mas vou esperá-la amanhã para dizer-lhe que, naquele dia, fiquei mais velho e pensei em Cecília Meireles e seu Retrato: ?Eu não tinha este rosto de hoje/ assim calmo, assim triste, assim magro/ nem estes olhos tão vazios/ nem o lábio tão amargo./ Eu não tinha estas mãos sem força,/ tão paradas e frias e mortas;/ eu não tinha este coração/ que nem se mostra./ Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil:/ Em que espelho ficou perdida a minha face??. Simplesmente, certamente e facilmente, pois esta mudança dá-se aos poucos, sem que a sintamos. Tão lenta que, mesmo olhando no espelho durante muitos dias, não a notamos. Lembrei, estrela matutina, meu mano Carlos, lá no Recife, sempre perto por seus escritos. Quando chegou aos oitenta anos, espirituoso, vendo que o contrário da palavra reviver é reviver, disse: ?Como não sou otário,/ vou reviver ao contrário/ vou recuar na idade,/ passar pela mocidade/ e ter sempre a esperança/ de voltar a ser criança?. Considerou que recordar seria melhor, pois para reviver, tem-se que necessariamente morrer, e versejou: ?Siga sempre seu destino/ é assim mesmo que se faz:/ já se lembrou do menino,/ recorde agora o rapaz?. E depois, ?Nem menino, nem rapaz;/ A fada, agora, disse:/ Viva a vida bem em paz,/ curtindo sua velhice?. Vem-me a constatação; eu, aos sessenta e cinco anos, já sou idoso. Já você, Dalva, com seus bilhões de anos, continua bela e sempre nova. Mas, quando a velhice me chega e Cecília insinua em que espelho se perdeu a minha face, não tenho dúvida: a minha face não está perdida. Se deixei de ter o viço, a exuberância, vou encontrá-los bem pertinho de mim. A minha face sem vinco, o meu rosto alegre, o meu olhar mais expressivo, o meu lábio mais risonho, a força de minhas mãos, quentes e vivas e o meu coração mais aberto, afável, amável foram transmudados para meus filhos, alguns já aos quarenta; estão em meus netos, bem mais jovens e estarão em mais uma neta e uma bisneta que vêm a caminho. E, ao mano, vou dizer que, deste modo, revivemos sem necessariamente morrer. (*) É bacharel em Economia.