Opinião
Poca urna

RONALD MENDONÇA * Tinha uma careca imensa à Serra sendo que maior. Sorria cronicamente, mesmo quando as coisas não tinham a menor graça - igual àquela atriz insossa fazendo propaganda de molho de tomate. Ao ler, retirava os óculos de lentes fortíssimas, pigarreava grosso, mas a voz saía fininha, em falsete, provocando risos mal contidos na molecoreba. Como Lula e Maluf, não podia ver uma eleição que já se peneirava todo para disputá-la. Era um atleta olímpico-eleitoral na melhor dimensão imaginada pelo lendário Barão de Cobertin: para ele, o importante era competir, ser eleito era outra história. Mas, daquela vez - a quarta - as coisas seriam diferentes. Desde a última disputa não descansara. Os trinta e pouco votos tinham mexido nos seus brios, cutucando sua alma de forma cruel não exatamente pelo número já esperado. É que a urna onde sua devotada esposa votara não havia registrado nenhum sufrágio para sua pessoa. Mano Lu engoliu em seco a decepção. Funcionário da antiga CER, tratava a todos por mano. Aos domingos à tarde era porteiro da geral do campo do CSA. Incorruptível nessa função, durante o desenrolar das partidas, vez por outra, era escalado para acalmar Pedro Doido, um excêntrico torcedor conhecido pelo terno branco, o inseparável guarda-chuva e a paixão incondicional pelo azulão da lagoa. Se tinha alguma graça para a criançada, para os adultos Mano Lu não passava de um chato. Inimigo do banho e da escova de dentes, gostava de parar as pessoas e, sem se deter nas respostas, indagava sobre a saúde de todos os membros da família, um a um, até dos já falecidos. Depois, pedia-lhes o apoio. Suas propostas e críticas variavam de coerentes a patéticas, passando pelas trágicas. Entre as primeiras estavam denúncias do abandono ao bairro com sua rua principal esburacada e sem calçamento, o péssimo serviço de transportes coletivos (ainda existiam bondes) e as inacreditáveis faltas dágua. Nas patético-trágicas, pretendia silenciar os alto-falantes das igrejas dos crentes, fechar na marra o terreiro de umbanda do Alto do Urubu e atear fogo nas palhoças das prostitutas da Rua da Palmeira. Xiita católico, tinha gana de transformar uma das mansões do Mutange em residência de verão do arcebispo. Depois de visitar casa por casa, guardando de cor os nomes e apelidos dos eleitores com as respectivas seções eleitorais, a pessoal certeza da vitória tornou-se inabalável Abertas as urnas, deu a lógica: Mano Lu tinha perdido mais uma. Seu maior desgosto, no entanto, foi descobrir que o sacristão, amigo e confidente, negara-lhe o voto. Dias depois, perdia a chance para uma quinta disputa: um derrame o mataria na fila da comunhão. (*) É MÉDICO E PROFESSOR DA UFAL