Opinião
Apari��es

MARCOS DAVI MELO * No início foi apenas uma empregada doméstica madrugadora, que viu a imagem da santa, incrustada no único pinheiro do jardim da casa, localizada em uma pequena paralela da Av. Tomaz Espíndola, no Farol. Católica fervorosa, imediatamente comunicou a aparição a sua vizinha, tenaz companheira de infortúnios. Sofregamente correram em direção ao pinheiro, tendo a companheira abandonado as frutas na geladeira, o leite no fogo fervendo e esborrando pelo fogão. O café esfriando, que não deu tempo de passar para a garrafa térmica. Mas valeu. Lá estava a santa em piedosa contrição a abençoá-las, e o carão que levaram das patroas foi tolerado muito melhor que das outras vezes. Agora tinham com quem compartilhar as agruras e dividir as aflições. No pequeno intervalo da faina diária aquele após o almoço, terminada a limpeza dos pratos e da cozinha e antes de começar os preparativos do jantar -, voltaram rapidamente ao pinheiro, não sem levar mais duas colegas das imediações. A santa ainda estava lá. Intacta. Nunca trabalharam tão satisfeitas e torcendo para o tempo passar logo. Afinal, como seria a noite? A luminosidade de uma lua cheia só realçou a imagem. Mais alguns passantes foram atraídos pelo pequeno e reverente grupo na calçada. Demoraram para chegar em casa naquela noite, e nem ligaram para as broncas dos maridos e amantes, que esfomeados esperavam a bóia. Cedinho, no dia seguinte, antes de o sol esquentar e de botarem a água no fogo para o café, já estavam reverenciando a santa no pinheiro. Logo formou-se um pequeno grupo, que só aumentou durante o dia. À noite, uma multidão já se comprimia na estreita rua em frente ao pinheiro. Em pouco tempo, foram puxadas e repetidas as rezas e pai-nossos. Uma certa hora, atônito, o proprietário do imóvel, funcionário do Banco do Brasil, que tentava repousar vendo o Repórter Esso na televisão, apareceu trêmulo de pijama na porta. Sua paz acabara. Logo se mudaria, abandonando a casa. Morava a algumas quadras de distância e já passara algumas vezes por lá, mas jamais conseguira ver a santa. Talvez a culpa fosse da minha fé periclitante. Uma noite, junto com outros amigos adolescentes, fui lá, atraído pela notícia de tumulto no local. A malta em favor, tinha se concentrado tanto, que em êxtase ameaçava não só a integridade física dos romeiros, como a dos aleijados em suas muletas; dos paralíticos em suas cadeiras de rodas; dos ceguinhos e seus guias. Em paroxismo, a multidão comprimida pela necessidade de se aproximar da imagem, botou o muro abaixo, causando gritaria, sustos e várias escoriações. Penetraram no jardim e muitos tentavam entrar na própria casa. Os clamores já não eram só pela santa, mas por: Um pouco de água para o ceguinho!; Pelo amor de Deus, merthiolate para o corte na perna!. A azáfama só cresceu com a sempre presente e inclemente turma de desocupados e bagunceiros. A polícia e o corpo de bombeiros foram chamados pelos vizinhos assustados. Os bombeiros esguicharam água para amenizar o fervor dos fiéis e demais infiltrados. No outro dia, o cenário era de devastação, o pinheiro tinha sido abatido a machadadas e segundo informações de alguns poucos e renitentes fiéis, a santa partira para outro sítio mais tranqüilo. (*) É MÉDICO