MARCAS DA LAVA JATO SERÃO TESTADAS COM NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
Legislação atinge integrantes de polícias, Ministério Público e Judiciário e especifica condutas
Por WÁLTER NUNES/ FOLHAPRESS | Edição do dia 03/01/2020 - Matéria atualizada em 03/01/2020 às 04h00
Em março de 2016, o então juiz federal Sergio Moro, responsável pelas sentenças da Operação Lava Jato, divulgou gravações de conversas telefônicas relacionadas ao ex-presidente Lula, então alvo de investigações. Havia áudios de diálogos do petista com assessores, aliados, políticos e até com a então presidente Dilma Rousseff, que tinha foro especial e, na época, enfrentava um processo de impeachment. No pacote de gravações, havia também uma conversa de Marisa Letícia, ex-primeira-dama, com seu filho Fábio. Ela reagia com palavrões ao panelaço que ecoava pelo país pedindo a derrubada de Dilma. A verborragia de Marisa, que morreria no ano seguinte após um acidente vascular cerebral, nada tinha a ver com a investigação de corrupção envolvendo o marido. Ainda assim, Moro decidiu tornar pública a conversa familiar. Na nova lei de abuso de autoridade, aprovada pelo Congresso e que entra em vigor nesta sexta-feira (3), há um artigo que torna crime, com pena de até quatro anos de prisão, a divulgação de “gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado”.
CONDUTAS
A nova legislação atinge, entre outros órgãos, integrantes de polícias, Ministério Público e Judiciário e especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade, além de prever punições. Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica e com punição branda. Juízes, membros do Ministério Público, defensores públicos e advogados ouvidos pela reportagem dizem duvidar que a nova lei provoque uma onda de punições, até mesmo devido aos filtros após as denúncias. Uma representação contra um eventual abuso de autoridade necessariamente tem que ser ajuizada por um membro do Ministério Público e julgada por um magistrado. Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a divulgação de mensagens trocadas entre integrantes da Lava Jato, em meados do ano passado. A revelação colocou em dúvida a imparcialidade de Moro e da equipe da força-tarefa.
REAÇÃO
A lei contra o abuso de autoridade teve forte reação contrária por parte de associações de magistrados, membros do Ministério Público e policiais. O próprio Moro, hoje ministro da Justiça, foi contrário à nova legislação, encarando-a como um ataque ao combate à corrupção. Bolsonaro chegou a vetar pontos da lei, mas esses foram depois derrubados pelo Congresso, o que foi visto como recado para a Lava Jato. Com isso, foi retomada, por exemplo, a punição de até quatro anos de detenção para quem constranger um preso -mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência- a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro. A lei não é retroativa, mas acadêmicos e criminalistas analisaram, a pedido da reportagem, alguns casos da Lava Jato em que houve polêmica sobre supostos abusos por parte do juiz e dos investigadores. Ainda durante a investigação contra o ex-presidente Lula, em 2016, Moro autorizou um grampo no telefone central do escritório de advocacia que defende o petista. Há relatórios que mostram que policiais federais monitoraram conversas entre os advogados do ex-presidente durante 23 dias. Não houve punição em nenhum desses casos. Mas isso não quer dizer que não houvesse lei coibindo tal conduta. O sigilo da conversa entre advogados, por exemplo, está previsto no Estatuto da Advocacia, que determina “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
“É que no Brasil há leis que pegam e leis que não pegam. Os colegas juristas do exterior nem entendem isso, mas é assim aqui”, diz David Teixeira de Azevedo, professor de direito penal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP.
“A atual lei de abuso de autoridade, porém, reforça o que já era crime e prevê penas maiores. Ela é mais clara ao descrever condutas específicas”, afirma Teixeira.