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TRAGÉDIA DA MINERAÇÃO DESTRÓI PARTE DA HISTÓRIA E DO PATRIMÔNIO

Afundamento de cinco bairros também representa uma verdadeira erosão da memória de Maceió

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Imagem ilustrativa da imagem TRAGÉDIA DA MINERAÇÃO DESTRÓI PARTE DA HISTÓRIA E DO PATRIMÔNIO
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“Um olhar atento sobre as coisas alagoanas”. Dar uma atenção mais profunda ao que é nosso, como exposto no icônico Manifesto Sururu, escrito pelo sociólogo Edson Bezerra ainda em 2004, nunca foi tão necessário. Estamos perdendo o passado, a identidade, a história. Uma verdadeira erosão da memória, que acontece junto com o afundamento de quatro bairros da capital alagoana.

A atividade mineradora da Braskem não pôs um ponto final somente às vidas construídas por milhares de famílias no Pinheiro, Mutange, Bebedouro e Bom Parto. Destruiu também parte do patrimônio material e imaterial do estado. Um dano sem precedentes para a cultura alagoana.

Foram grupos de dança, folguedos, quadrilhas juninas, procissões, festas tradicionais e religiosas, ofícios e outra série de manifestações que são a “nossa cara” e que, de repente, deixaram de existir nessas localidades.

Isso sem contar com o patrimônio físico, como as praças, que costumavam reunir vizinhos e famílias inteiras no final de tarde e que eram palcos de festejos típicos do interior, mas que ocorriam bem no coração da capital do Estado de Alagoas.

É o caso da Praça Lucena Maranhão, no bairro de Bebedouro, que foi cenário de muitas apresentações de folguedos e festas de Santo Antônio de Pádua, uma das mais tradicionais da cidade.

O equipamento cultural ficava defronte à Matriz que levava o nome do santo e, todos os anos, centenas de fiéis nele se reuniam para festejar e celebrar a fé. A Igreja, que funcionava desde 1913, também fechou as portas e, em 2022, celebrou a última missa, após 109 anos de história. Hoje, funciona na matriz provisória da Santa Amélia, ao lado da Chã do Bebedouro.

A lista das edificações e espaços que contam parte da história de Alagoas e que estão abandonadas em razão do problema de afundamento do solo é grande e inclui, entre outras, a Igreja Nossa Senhora do Bom Parto, a Vila Operária da Fábrica Alexandria, o Porto da Ponte ou Porto do Sururu, a Igreja de São Pedro, o Complexo Nossa Senhora do Bom Conselho - que é tombado pelo estado -, os prédios do Hospital Psiquiátrico José Lopes e da Clínica de Saúde Miguel Couto, a sede do Instituto do Meio Ambiente (IMA), a Paróquia Menino Jesus de Praga e a Igreja Batista do Pinheiro.

Para a superintendente de Patrimônio e Diversidade Cultural da Secretaria de Estado da Cultura (Secult), Perolina Lyra, o problema nos bairros provocou um prejuízo cultural incalculável. Mesmo passando a funcionar em outras localidades, como é o caso das igrejas, tudo se perdeu. Cada família realocada procurou um novo local para morar e, naturalmente, novos espaços para frequentar. Nada será como era antes.

“O impacto cultural ocorrido é imensurável, porque atinge bens físicos materiais e bens imateriais. No Bom Parto, Mutange, Bebedouro e Pinheiro havia diversas edificações, como a Vila Operária e a sede do IMA. Em Bebedouro, nem se fala. Foram paróquias, o Colégio Bom Conselho e o prédio do Zé Lopes, que representam impressões culturais de uma época. Eles não foram ao chão, mas estão sem uso, abandonados, e isso é de um impacto impossível de medir”, afirma Perolina.

Ela destaca que, paralelo a essas questões, há também as manifestações culturais, que foram fortemente impactadas, como os grupos de dança e capoeira e blocos carnavalescos tradicionais, assim como os ofícios das benzedeiras, dos violeiros, a pesca artesanal na lagoa e a venda de mariscos, como o sururu e o maçunim. Marcas da identidade alagoana que se perderam e que, para muitos, hoje são só memórias.

“São as formas de expressão, o modo de fazer, os ofícios e as celebrações. A questão dos folguedos, como o Guerreiro e o Pastoril, as quadrilhas, o coco de roda, as procissões e a corrida de canoas, que eram muito fortes nesses bairros. A proximidade física para que esses brincantes possam se reunir para brincar e perpetuar essa tradição cultural não existe mais e é fundamental que eles tenham essa questão geográfica a favor. Quando cada um vai para um lugar, perde-se o link entre as pessoas para que possam manter vivas as tradições. Não tem mais local de ensaio perto de todos, um espaço para se reunirem, e assim acabam deixando de existir”, diz.

INVISIBILIDADE HISTÓRICA

O sociólogo Edson Bezerra conta que, por muitos anos, essas regiões que hoje se tornaram o centro das atenções não só em Alagoas, mas em todo o país, amargaram uma invisibilidade inexplicável, tendo em vista as belezas naturais que cercam os bairros, com o cenário impecável da Lagoa Mundaú, e a riqueza histórica e cultural que não se vê em todo local.

“Eu diria que é uma pena só terem olhado para essa região durante a tragédia, porque Alagoas se deu ao luxo de invisibilizar uma das paisagens mais bonitas do Brasil, que é o complexo Mundaú-Manguaba. Lugar de uma beleza imensa. Além disso, toda essa região tinha uma culinária, uma paisagem e tradição próprias, um cruzamento que passa por Palmares, pelos holandeses, e tudo isso ficou invisibilizado pelo trade turístico, por causa do ‘sol e mar’, esvaziando a identidade cultural alagoana”, pontua.

Ele afirma ainda que a região atingida pela atividade mineradora da Braskem é uma localidade de ancestralidade, um dos espaços mais antigos da cidade. Lugares centenários, que deram nome ao estado, e que hoje, estão mortos, totalmente sem vida, eternizados somente nas memórias e nas obras literárias que tiveram esses bairros como ambientação.

O que diria Graciliano Ramos, se vivo estivesse, a respeito da destruição do bairro de Bebedouro pela mineradora? É lá que o funcionário público Luís da Silva, personagem que narra o livro Angústia, uma de suas obras primas, traz parte do enredo. Um capítulo inteiro do livro se passa ali. O nome do personagem, inclusive, foi inspirado no Riacho do Silva, que cruza o bairro.

É na região que se ambienta o primeiro romance de costumes de Alagoas, o Traças e Troços, de Pedro Nolasco Maciel, que foi publicado em 1886. Foi também em Bebedouro que viveu um dos maiores entusiastas e organizadores de festas populares que Maceió já viu: o Major Bonifácio, que promoveu inúmeras comemorações que entraram para a história da capital alagoana, como os carnavais e os natais que atraíam pessoas de diversos outros bairros.

E tem mais. O casarão da família Nunes Leite, situado em Bebedouro, aparece em um dos primeiros filmes produzidos no país, na época do cinema mudo. Gravado em 1933, Casamento é Negócio tinha o Major Bonifácio como um dos atores.

“A casa onde morou Nise da Silveira também fica em Bebedouro. Ou seja, nessa região, temos uma ancestralidade primitiva, um lugar de mestres. E o que está acontecendo acaba provocando uma mutilação da memória da cidade. Uma mutilação causada pela Braskem, que vem, desde a década de 70, detonando a localidade, começando pelo Pontal da Barra. Ali deveria ser a nossa Ponta Verde, mas o que vemos é uma grande erosão da memória”, ressalta Edson Bezerra.

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