Esperança
Regulamentação da cannabis medicinal tira pacientes da clandestinidade em Alagoas
Pacientes e familiares esperam que a nova política garanta acesso gratuito à cannabis medicinal pelo SUS

Da clandestinidade das ruas até os laboratórios, farmácias e, por fim, pacientes. Esse pode ser o caminho da maconha em Alagoas, caso a Lei 8.754/2022, que trata do uso medicinal da planta, seja finalmente regulamentada. A norma foi promulgada em novembro daquele ano pela Assembleia Legislativa e será agora regulamentada após decisão do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL).
O texto original foi elaborado por Anivaldo Luiz da Silva, o Lobão (MDB), enquanto ocupava uma cadeira como suplente. A proposta autoriza o estado a produzir e manipular a planta com finalidade terapêutica, garantindo a distribuição gratuita pela rede pública de saúde a pessoas diagnosticadas com doenças crônicas, mediante prescrição médica.
Lobão acredita que a medida pode garantir qualidade de vida a pessoas com Parkinson, autismo, depressão, transtornos de ansiedade, fibromialgia, insônia e câncer, além de incentivar pesquisas científicas. “O que fizemos foi trazer a discussão sobre um tema que estava em efervescência em todo o país e até mesmo no mundo. Nós, inclusive, estamos atrasados nisso. No projeto, propomos também que haja um aprofundamento do tema com pesquisas. O que queremos é garantir qualidade de vida para quem sofre”, afirmou.
Na semana passada, a lei voltou ao debate após o desembargador Márcio Roberto, atendendo a pedido da Defensoria Pública do Estado, determinar que o governo promova sua regulamentação no prazo de 90 dias. Desde a sanção, o texto encontra-se na Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), que ainda não adotou medidas para viabilizar sua execução. A discussão tem o acompanhamento da Comissão de Cannabis Medicinal da OAB, criada em 2024.
Para o presidente da Comissão, o advogado Lucas Sobral, a falta de regulamentação paralisa o avanço necessário: “Estamos parados no tempo. Mais pessoas foram diagnosticadas com problemas graves e seguem sem acesso aos benefícios do óleo extraído da planta”.
“Cada vez mais precisamos de políticas públicas e espaço de diálogo que tratem sobre esse universo que é a cannabis medicinal. E não só para a entrega dos medicamentos, mas também para garantir acesso à consulta médica, o que ainda é um desafio para pacientes sem condições financeiras”, destacou Sobral.
Enquanto a lei estadual não é aplicada, Sobral tem atuado diretamente para garantir, judicialmente, o acesso à cannabis medicinal. Recentemente, com apoio da Comissão, contribuiu na elaboração de um projeto de lei municipal. Assinado pela vereadora Teca Nelma (PT), o texto tramita na Câmara de Maceió e aguarda análise da Comissão de Constituição e Justiça.
Durante uma audiência pública sobre o tema, Teca destacou: “Mesmo com todos os avanços, sabemos que o acesso é restrito, especialmente por conta do alto custo dos medicamentos, da falta de informação e da despreparação das unidades de saúde. O que queremos é construir juntos uma política pública eficiente, humana e que respeite a ciência. Precisamos enfrentar o preconceito contra um medicamento que tem levado qualidade de vida a muitas pessoas.”
O debate contou com a presença do ex-presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, desembargador Tutmés Ayran, que reforçou a urgência da regulamentação. “A lei está lá na Sesau e até agora não saiu. Isso revela uma ignorância que alimenta o preconceito e faz um mal enorme às pessoas. Estamos tratando aqui do direito ao não sofrimento. Ninguém pode tirar das pessoas o poder de buscar alternativas para aliviar a dor. Não estamos tratando do uso recreativo”, ponderou.
Sem regulamentação, pacientes buscaram alternativas por conta própria. Foi assim que surgiu a associação Liamba, que reúne pessoas interessadas em produzir óleo de forma artesanal e articulada. Letícia Ravelly, presidente da entidade, conheceu a cannabis como usuária e aprofundou seus conhecimentos após se formar em Farmácia. Hoje, possui um habeas corpus preventivo para plantar e produzir seu próprio óleo, além de viabilizar sua distribuição a pacientes com prescrição médica.
“O uso da cannabis para fins medicinais vem crescendo no mundo e até mesmo no Brasil, apesar das restrições legais, do preconceito e da desinformação. Mas quem está doente busca qualquer alternativa. Foi assim comigo, que tenho transtorno de ansiedade”, afirmou Letícia.
Mesmo sem sede própria, a entidade tem articulação nacional com médicos que realizam consultas on-line e emitem laudos para prescrição. Os medicamentos são preparados de forma individualizada. Segundo Letícia, ao contrário dos remédios convencionais com posologia padronizada, os derivados da cannabis são ajustados à necessidade de cada paciente, com resultados mais eficazes e menos efeitos colaterais.
“O corpo humano possui um sistema canabinoide que utiliza neurotransmissores lipídicos para modular a comunicação com as células. Por isso, o óleo de cannabis é bem tolerado e ajuda a tratar doenças, promovendo equilíbrio com poucos efeitos colaterais, como boca seca ou sonolência, que são facilmente ajustáveis”, explicou.
Ela compara os efeitos com os de medicamentos de tarja preta: “Prefiro boca seca a diarreia, intoxicação hepática ou taquicardia. Os remédios convencionais causam danos acumulativos e, às vezes, irreversíveis”. Letícia também decidiu cursar Farmácia ao perceber os benefícios do tratamento, e acredita que, com mais estudos, será possível desenvolver variedades da planta com composições específicas para cada doença.
“Até em casos graves como o câncer, a cannabis ajuda a minimizar os efeitos da quimioterapia ou radioterapia. Ela funciona como paliativo, reduzindo dores, melhorando o humor e a disposição”, completou.
A busca por qualidade de vida também levou a mãe atípica Paula Marques a procurar a associação. Com dois filhos autistas, ela enfrentava os efeitos adversos dos medicamentos convencionais, como diarreia, ansiedade e insônia. “Meu filho não sentava para comer, mesmo medicado tinha crises em que batia a cabeça na parede. Minha filha tinha dificuldades de comunicação. Quando iniciamos o tratamento com o óleo, ela começou a falar e até a cantar”, relatou.
Segundo Paula, os resultados positivos mudaram até a percepção de seus pais, antes resistentes ao uso da medicação. Hoje, são defensores do tratamento. A experiência transformadora motivou Paula a se juntar a outras mães para compartilhar sua história em palestras e eventos. Ela acredita que a desinformação é tão prejudicial quanto as doenças que o tratamento ajuda a combater.
“Com o avanço da produção e das pesquisas, será possível direcionar a cannabis para enfermidades específicas. As doses para dor física, por exemplo, são diferentes das utilizadas para ansiedade ou insônia”, explicou.
Além disso, o cultivo legal da planta poderia gerar empregos, movimentar a economia local e se tornar uma alternativa sustentável para regiões pobres de Alagoas. “A planta se adapta bem ao solo seco e quente. Poderia ser uma nova fonte de renda e dignidade para muitas famílias”, defende Letícia.
Superar o estigma da maconha, associada ao tráfico e à violência, exige uma mudança de mentalidade. Para isso, será preciso que a regulamentação da lei seja acompanhada de políticas públicas, campanhas educativas e acesso gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS).