Espigões
Maceió cogita perder ícone arquitetônico enquanto João Pessoa celebra preservação
Casos dos hotéis Jatiúca e Tambaú ilustram visões opostas sobre valorização do patrimônio urbano



Há em Maceió marcas tão profundas que se confundem com a própria alma da cidade. São referências ditas para lembrar lugares que às vezes nem existem mais, como o Gogó da Ema, antiga rodoviária e o Cine Ideal.
A 370 quilômetros de distância, a cidade de João Pessoa deu um exemplo em favor da preservação, conforme decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que validou o leilão do Hotel Tambaú, na capital paraibana.
O marco arquitetônico, inaugurado em 1971 e projetado pelo arquiteto Sérgio Bernardes, é conhecido por sua arquitetura circular única e integração harmoniosa com a paisagem litorânea.
A decisão do tribunal garantiu que o hotel continue operando como empreendimento turístico, preservando sua estrutura original e mantendo viva a memória afetiva dos paraibanos e visitantes.
Por outro lado, o Hotel Jatiúca, peça estrutural da imponência da capital alagoana, é mais um marco que corre risco de se ver somente relegado às lembranças.
Inaugurado em 1979 e considerado o primeiro resort urbano “pé na areia” do Brasil, o empreendimento foi adquirido pela Construtora Record e corre o risco de perder sua identidade, causando impactos ao ecossistema da Lagoa da Anta, em função da construção de cinco megatorres de alto padrão, com 15 andares cada.
O seu paisagismo ficou a cargo do renomado Roberto Burle Max com integração harmoniosa entre o urbano e a paisagem litorânea. Por aqui, no entanto, isso corre o risco de acabar.
Essa ameaça de transformação do Hotel Jatiúca é motivo de preocupação entre ambientalistas, urbanistas e membros da sociedade civil, já que pode ocasionar a descaracterização da Lagoa da Anta e a perda de um símbolo da história maceioense.
Parte da área onde o hotel está situado pertence ao município de Maceió e, segundo a Lei Municipal nº 2.384/1987, não pode ser vendida ou utilizada para fins diferentes dos originalmente previstos, o que adiciona complexidade jurídica à situação.
Especialistas ouvidos pela Gazeta de Alagoas indicam que haverá uma longa batalha nos tribunais para que isso se concretize. Ambientalistas também apontam que intervenções urbanas precisam atender a requisitos legais, urbanísticos e ambientais, mediante estudo de impacto ambiental e realização de audiências públicas, por exemplo.
O promotor Jorge Dória, titular da Promotoria de Justiça de Urbanismo do MPAL (Ministério Público de Alagoas), já reiterou em entrevistas à reportagem que a grande preocupação é justamente a possibilidade de desconfiguração da paisagem.
“O aspecto paisagístico é protegido por lei, e ali temos um cartão-postal de Maceió. Um local que se tornou icônico, não apenas pelo hotel, mas pela composição de diversos fatores, como praia, lagoa e natureza”, afirmou no início desse ano.
A Jatiúca, bairro cujo hotel homenageia em seu nome, prosperou a partir daquela construção. O espaço verde é responsável por reuniões de famílias, caminhadas, atividades de lazer e até mesmo celebrações. E o mais importante: é gratuito, está à disposição da população desde sempre.
CUIDADO COM
A MEMÓRIA
Para a doutora em arquitetura e urbanismo Catarina Agudo, a preservação do patrimônio cultural e, neste caso, arquitetônico, vai além da conservação de edificações antigas, mas representa um cuidado com a memória, cultura e identidade de uma sociedade.
Com essa proteção do legado, diz ela, as gerações futuras podem compreender e valorizar as camadas culturais que compõem o presente, fortalecendo os vínculos da comunidade com seu território e promovendo um sentimento de pertencimento coletivo. “Entretanto, parece que a cidade de Maceió segue em direção oposta a esta compreensão, diferentemente de outras capitais do Nordeste, que priorizam o fortalecimento das relações entre sua população e seu patrimônio”, explica.
Em 2021, a prefeitura de João Pessoa decidiu desapropriar o Hotel Tambaú, considerando-o como de utilidade pública. Com o tombamento, são respeitadas as características originais, com reintegração do edifício à vida da cidade, assim como fora projetado.
“Esse tipo de iniciativa fortalece o sentimento de identidade da população, contribui para o turismo cultural e para a educação patrimonial, além de promover o uso sustentável e contemporâneo de edificações históricas”, analisa.
A perda do ambiente do Hotel Jatiúca, com impactos na Lagoa da Anta, por outro lado, seria um ‘rompimento com a paisagem cultural da cidade’, com impactos visuais relevantes sobre a orla e sobrecargas na infraestrutura urbana da área, como trânsito, drenagem e serviços públicos.
“Esses dois casos ilustram caminhos opostos: um que resgata e fortalece a memória urbana, e outro que a apaga em nome de um empreendimento imediatista. A escolha entre eles é, antes de tudo, uma decisão sobre o futuro que se quer construir para as cidades — um futuro que valorize suas raízes ou que as substitua por uma urbanização heterogênea e desconectada de sua história”, complementa.