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Democracia, 40 anos: alagoanos reveem seus sonhos após enviarem cartas à Constituinte

Documentos revelam esperanças de brasileiros no início da redemocratização do País

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Pegue uma folha em branco. Olhe para as linhas. Tire a tampa da caneta. Você pode escrever o que quiser. Parece fácil. Coce a cabeça enquanto pensa em como escolher a primeira frase. Escreva essa primeira frase. Repense.

O Brasil estava saindo de um dos períodos mais duros de sua história e começava a atravessar um novo tempo, com esperança renovada. Lá vinha a segunda frase. Todo mundo queria contribuir, mas a maioria sequer sabia o que, de fato, caberia numa Constituição. Ainda assim, esses eram os nossos sonhos.

Mais empregos. Melhor distribuição de renda. Prioridade para educação. Leis mais rígidas contra o crime. Mais espaço para as mulheres. Segurança. Punições maiores. Melhoria nas leis de trânsito. Voto aos 16. Houve até quem sugerisse a esterilização temporária de homens e mulheres, por uma década, como forma de conter a superpopulação. E houve também quem duvidasse da eficácia de uma carta, achando que valeria pouco.

Tudo era válido. Obviamente, nem tudo convinha. Era maio de 1985 quando o então presidente José Sarney convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Um ano depois, em um mês de junho como este, diversos setores da sociedade civil enviaram cartas para os constituintes com suas demandas.

Quase quatro décadas depois, as vozes de alagoanos que sonharam com um País mais justo, digno e desenvolvido voltam a ecoar. São cartas escritas em 1986, agora resgatadas pelo projeto “A Constituição dos Sonhos”, do Senado. Entre os pedidos, estavam educação de qualidade, combate à fome, valorização da vida, empregos e participação social. “Chorei quando revi minha carta. Apesar de não lembrar [do que escreveu], ali estava eu. Continuo a mesma. Continuo cheia de sonhos, com vontade de colaborar”, diz a médica Maria de Fátima Alécio Mota, uma das personagens que, na juventude, ajudou a escrever parte da história do Brasil.

À época, a pneumologista Maria de Fátima Alécio Mota, hoje com 57 anos, estava no colegial. Ela pediu para que o ensino profissionalizante fosse estimulado no Brasil. “Penso que universidade para todos é utopia. Precisamos profissionalizar nossos jovens no ensino médio e oferecer melhores empregos para aqueles que não conseguirem chegar à universidade tenham uma vida digna”, escreveu. E o tempo passou.

Foi somente na última terça-feira, 39 anos depois, que ela reviu a mensagem. E chorou.

“Acabei chorando porque foi um momento ímpar. Saber que eu era uma jovem cheia de sonhos, com vontade de fazer algo, me deixa muito feliz. Até sinto saudades dessa jovem que sonhava em mudar o mundo”, admitiu.

Para ela, o pedido foi atingido parcialmente. Os dados do MEC em 2023 apontam que existem atualmente 2,4 milhões de pessoas cursando o Ensino Profissional e Tecnológico no País.

“A minha preocupação na carta era justamente não ter universidade pública para todos. Eu consegui chegar lá, me tornei médica, mas continuo com a mesma opinião: universidade pública para todos é utopia, o que é uma pena”.

No total, foram enviadas 72.719 cartas pelos cidadãos brasileiros. O Senado Federal compilou cada uma delas em uma página do projeto “A Constituição dos Sonhos”. É possível explorá-las através de uma plataforma que facilita a busca por temas, cidades e nomes dos autores.

Para fazer esta reportagem, por exemplo, foram usados filtros como ‘Maceió’ e ‘Alagoas’. Mais de 500 cartas foram lidas. Os personagens, um a um, por mais que tivessem pensado bastante quando escreveram a carta, não lembravam os trechos exatos.

A professora da Faculdade de Nutrição da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) Leiko Asakura, de 59 anos, ouviu um podcast da ‘Rádio Novelo’ que falava sobre a confecção das cartas e nem sequer lembrou que ela própria tinha participado. Ela estava no segundo ano da graduação em Nutrição.

“Considero que foi muito importante que o Senado tenha recebido as cartas, pois foi uma possibilidade de a população expressar suas necessidades, seus desejos. Algumas das demandas que propus aconteceram, como a merenda escolar, hoje regulamentada por uma lei que atende a todos os estudantes da rede pública de ensino”, diz.

Em sua carta, a nutricionista trouxe à tona um dado referente à desnutrição, que em 1984 atingiu 86 milhões de crianças no Brasil. Neste ano, uma publicação produzida pela Fundação Abrinq revelou que, em 2023, 3,8% das crianças com menos de 5 anos estavam desnutridas no País.

“Foi muito importante ver que minhas ideias e propostas são as que eu continuo defendendo. Hoje, faria novos pedidos, como uma reforma tributária justa e saudável, tirando todos os impostos dos alimentos in natura e minimamente processados. Pediria também uma maior responsabilização à empresas como a Braskem e Vale, que causaram crimes ambientais. A lista seria muito grande”, afirma.

O arcebispo Dom Edvaldo Gonçalves Amaral, conhecido em Maceió por seu compromisso evangelizador, também escreveu uma carta. Ele defendeu que a vida humana fosse “preservada, sustentada e valorizada”, reiterando que a “Educação é um direito de todos”, além de pedidos pela dignidade do trabalho e liberdade de expressão. A Gazeta procurou Dom Edvaldo, hoje com 98 anos, mas ele não pôde participar devido à idade.

DESEJO DE CONTRIBUIR

O jornalista Delane Barros, de 53 anos, foi um dos mais novos a enviar uma carta. Ele não imaginava que o material poderia ser consultado novamente e até se surpreendeu com seus pedidos da época, que hoje considera imaturos. Ele tinha 14 anos e propôs a colegas de classe que também enviassem sugestões.

“Rever é constatar que mudamos. Ao reler a carta, vejo que o desejo de contribuir com o País continua vivo. E confirma, também, o quanto o nível do nosso Congresso tem baixado a cada legislatura. No meu caso, eu estava saindo de um cenário em que não sofri com a ditadura, mas sim com os resquícios dela”.

Para o cientista político Ranulfo Paranhos, o resgate dessas cartas apresenta um retrato da sociedade que reergueu a democracia no Brasil. “Foi justamente a pressão popular, com toda a sua heterogeneidade, que produziu a chamada ‘Constituição Cidadã’. Ela é o fruto de um amplo e, por vezes, contraditório esforço coletivo”, explica.

Apesar disso, fatores como a polarização política latente, a crise do presidencialismo de coalizão e uma tentativa de golpe de Estado, segundo ele, contribuíram para que a confiança nas instituições e na própria democracia fosse abalada. “Os efeitos da crise atual são múltiplos e duradouros. A violência política normalizou-se em certos segmentos, e o debate público parece ter empobrecido, dominado por narrativas simplistas e populistas. Superar essa crise exigirá muito esforço. Será preciso fortalecer as instituições, combater a desinformação de forma eficaz e, acima de tudo, restabelecer canais de diálogo”, afirma.

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