Mais recursos
Municípios alagoanos criam loterias próprias em cenário de incerteza jurídica
Prefeituras buscam nova fonte de receitas, mas enfrentam resistência federal e julgamento no Supremo


Em busca de mais recursos para financiar políticas públicas em áreas como saúde, educação e assistência social, prefeituras alagoanas estão aderindo a uma prática que tem se espalhado pelo País: a criação de loterias municipais. O crescimento simultâneo desse fenômeno reacende debates sobre fiscalização, segurança jurídica e limites da autonomia municipal.
Em todo o Brasil, mais de 70 municípios aprovaram leis semelhantes desde o fim de 2023. Entre eles estão as cidades alagoanas de Piaçabuçu, Inhapi, Novo Lino, Olho d’Água do Casado, São Miguel dos Milagres, Junqueiro e Joaquim Gomes.
Entre os casos mais avançados está o de Joaquim Gomes, que lançou a Concorrência Pública para concessão da gestão, implantação e operação de sua loteria municipal. A licitação ocorrerá por sistema eletrônico, com sessão marcada para 27 deste mês.
Segundo informações fornecidas pela prefeitura, o contrato prevê concessão inicial de 20 anos, prorrogável por igual período caso haja boa execução e interesse público.
A administração local estima receita inicial anual de R$ 244.678,28, mas destaca que o valor final dependerá do maior lance percentual de outorga variável, principal critério de julgamento do certame.
O município definiu ainda que o repasse mínimo à prefeitura será de 5% da receita bruta da loteria, vencendo a empresa que oferecer o percentual mais alto acima desse limite.
Diferentemente de outras licitações do setor, Joaquim Gomes não exigirá atestados de capacidade técnica, capital social mínimo ou investimento inicial. A comprovação de capacidade ocorrerá por meio de uma Prova Operacional de Conceito (POC): o vencedor provisório terá cinco dias para demonstrar as funcionalidades da solução proposta.
A gestão ressalta que a medida busca garantir eficiência diante da “complexidade e inovação tecnológica envolvidas no projeto”.
EXPANSÃO
Outros municípios alagoanos também avançam rapidamente. Em Piaçabuçu, a Lei Municipal nº 603/2025 criou o serviço público Lotepi, permitindo operação direta ou por delegação e destinando arrecadação para saúde, educação, turismo, segurança e assistência social — inclusive com previsão de reversão de prêmios não reclamados.
Em Novo Lino, a Loteria Municipal foi instituída pela Lei nº 380/2025, com concessões de até 20 anos e alíquota de 5% sobre a receita bruta.
Em Inhapi, a Lei nº 244/2025 autoriza concessões de 25 anos e determina auditorias periódicas pela Controladoria-Geral. Em Olho d’Água do Casado, um decreto de 2025 consolidou a operação da loteria, criando comitê gestor e regulamentando modalidades como raspadinhas e jogos instantâneos.
BASE LEGAL CONTESTADA
Embora a expansão esteja em ritmo acelerado, o ambiente jurídico é marcado por divergências. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a União não detém exclusividade na exploração de loterias, permitindo que estados operem seus próprios serviços. Municípios passaram a interpretar que, na ausência de proibição expressa, a autonomia municipal lhes daria base para criar loterias locais.
Esse entendimento, porém, conflita com a posição do governo federal. Para a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda, a prática é irregular porque a Lei 14.790/2023 — que regulamenta apostas de quota fixa — autoriza apenas União, estados e Distrito Federal a explorarem esse setor. Não citar os municípios, segundo o governo, significaria exclusão da competência.
Entretanto, para o presidente da Associação Nacional das Loterias Municipais e Estaduais (Analome), Romero Roma, o STF foi claro: a União tem competência para legislar sobre o tema, mas não tem exclusividade para explorar esse serviço público. Ou seja, estados (e, por consequência lógica, os municípios) têm o direito de operar suas próprias loterias, desde que respeitem a legislação federal vigente.
Ele afirma que a manutenção das loterias municipais, além de gerar recursos extras para as prefeituras, representaria um incremento de R$ 11,6 bilhões ao ano à União em termos tributários.
“Negar esse direito agora aos municípios é não só incoerente com o entendimento do próprio STF, como também um retrocesso para o federalismo e para a administração pública eficiente”, afirma.
A controvérsia chegou ao STF por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pelo partido Solidariedade, que pede a suspensão imediata das leis municipais e argumenta que a proliferação de loterias locais cria um “cenário caótico”, dificulta a fiscalização e reduz a proteção aos consumidores, já que normas municipais não seguem as exigências mais rigorosas impostas pelo governo federal — como a outorga de R$ 30 milhões prevista para empresas de apostas nacionais.
O julgamento da ADPF 1212 será decisivo para definir o futuro das loterias municipais. Enquanto a decisão não chega, municípios alagoanos seguem implementando seus sistemas e apostando que a jurisprudência atual do STF, embora não definitiva, lhes assegura espaço para explorar o serviço.
